Disponível desde o dia 1 de julho de 2014, o Registo Nacional do Testamento Nacional (RENTEV) assinala um ano de simplificação no procedimento de registos e consulta de testamentos vitais.
Sobre este assunto surgiu recentemente na comunicação social a divulgação dos resultados do primeiro estudo “Os Portugueses e o Testamento Vital”, promovido pela Universidade Católica Portuguesa em parceria com a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos. É de todo importante mencionar e refletir sobre alguns dos resultados desse mesmo estudo. Assim, é de salientar que:
- Apenas 22% dos 982 inquiridos conhece o regime legal do Testamento Vital. Logo, 78% dos inquiridos desconhece o Testamento Vital;
- Os indivíduos da Grande Lisboa são os que têm mais conhecimento sobre este documento legal (32,9%), seguidos dos da região Centro do país (22.4%);
- No Norte do país, apenas 16,9% dizem saber em que consiste;
- As pessoas com mais rendimentos económicos são as que têm mais conhecimentos sobre o Testamento Vital (60,5%);
- Os meios de comunicação social são a fonte predominante de transmissão de informação sobre este documento (66,2%), sendo que os médicos de família apresentam um valor de 2,8%, os enfermeiros de 2,9% e os outros profissionais de saúde que não estes dois últimos de 4,3%;
- Dos 216 inquiridos que dizem conhecer o Testamento Vital apenas 50,4% referem que sabem como o fazer e a quem recorrer;
- Por último, apenas 1,4% dos inquiridos afirmou já terem realizado o Testamento Vital.
Em suma, o estudo aponta para um significativo défice de conhecimento geral, tanto por parte da população, como dos próprios profissionais de saúde que não se deveriam demitir desta função.
Alguns dados e factos sobre o RENTEV
- O Registo Nacional do Testamento Nacional (RENTEV) arrancou há um ano e neste momento conta com 1468 testamentos vitais ativos, ou seja, completamente concluídos;
- A maioria dos registos pertence ao género feminino, com 908 diretivas antecipadas de vontade ativas. No que respeita ao sexo masculino, o sistema informático, registou 562 testamentos ativos, desde julho de 2014;
- Através do Portal do Utente, o cidadão/utente pode consultar o seu Testamento Vital e verificar se está correto, ativo e dentro do prazo de validade de cinco anos, pode, acompanhar todos os acessos que são feitos pelos médicos;
- Os médicos, por seu lado, são os únicos profissionais que podem consultar os testamentos vitais dos doentes, em situações clínicas de incapacidade para expressar a sua vontade, através do Portal do Profissional.
Relativamente a este último item, apesar da Ordem dos Enfermeiros não ter solicitado um parecer formal, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) entendeu que a questão merecia uma clarificação ética que justificasse a sugestão de uma alteração legislativa e, nesse sentido, emitiu no final de maio de 2015, um parecer sobre a “Exclusão administrativa dos enfermeiros ao RENTEV”, onde concluiu que o acesso ao RENTEV deve ser permitido “aos profissionais de saúde a quem cabe atender as disposições da pessoa, particularmente médicos e enfermeiros”. Consequentemente, este parecer foi enviado ao Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde Dr. Leal da Costa.
Importa contextualizar esta questão, lembrando que a emissão deste Parecer surge na sequência do ofício dirigido ao referido Secretário de Estado, elaborado pela Ordem dos Enfermeiros, em julho de 2014, após a publicação da Portaria n.º 96/2014 do Ministério da Saúde que regulamenta a organização e funcionamento do RENTEV. Na altura, a Ordem dos Enfermeiros contestou a situação dando conhecimento ao CNECV.
No referido ofício enviado ao Ministro da Saúde, a Ordem dos Enfermeiros através do seu Bastonário, Enfermeiro Germano Couto, vem afirmar que o acesso ao RENTEV é limitado apenas ao médico, o que “revela uma elaboração legislativa que não considera efetivamente as práticas clínicas correntes no cuidado à pessoa em fim de vida”.
No mesmo documento, a Ordem dos Enfermeiros expõe a gravidade e as consequências de limitar o acesso ao RENTEV, na medida em que “o enfermeiro, desconhecendo a diretiva antecipada de vontade, e com base nos dados clínicos pode decidir por um procedimento invasivo que permita a alimentação, hidratação e compliance terapêutica, tendo como objetivo terapêutico inverter uma situação, por exemplo, de desidratação, desnutrição e dor”. Acrescenta, ainda, que “ao realizar este procedimento, o enfermeiro vai contra a vontade expressa do doente”. Neste sentido, e nas palavras do Bastonário da Ordem dos Enfermeiros, a exclusão do enfermeiro “representa um claro prejuízo para a operacionalidade do Testamento Vital, com dano sério para as pessoas que o tenham registado”. Assim, a Ordem dos Enfermeiros, “a bem da garantia de respeito pelas pessoas que venham a registar o seu testamento vital no RENTEV, exige a reposição desta falha grave”.
Deste modo, para a Ordem dos Enfermeiros, a Portaria n.º 96/2014 revela, mais uma vez, “uma visão médico-cêntrica da saúde, que ignora de forma preocupante, a realidade da prática clínica”. Por outro lado, a portaria em questão contraria o Estatuto da Ordem dos Enfermeiros (alínea f) do número 2 do Artigo 75º), visto que nega ao enfermeiro o acesso à informação, situação que coloca em causa a vontade expressa pelo doente.
Por último e até ao momento, a Ordem dos Enfermeiros não obteve qualquer resposta ao ofício enviado, em julho de 2014, ao Secretário de Estado Adjunto do Ministro da Saúde Dr. Leal da Costa, nem ao ofício enviado em fevereiro de 2015, à Presidente da Assembleia da República, Dra. Maria da Assunção Esteves, onde é solicitado a clarificação da exclusão administrativa dos enfermeiros no acesso ao RENTEV.
Concluindo e citando o CNECV: “O regime legal das Diretivas Antecipadas de Vontade deve ser interpretado no sentido de permitir o acesso ao RENTEV aos profissionais de saúde a quem cabe atender as disposições da pessoa, particularmente médicos e enfermeiros”. Urge o Governo esclarecer esta situação de forma a respeitar o princípio do primado do ser humano, nomeadamente quanto ao exercício da sua liberdade de escolha dos cuidados de saúde e, em concreto, no respeito pela sua autonomia em determinar quais os cuidados que deseja ou não receber quando se encontre possibilitado de decidir. Não nos devemos esquecer que na verdade, o acesso por parte dos enfermeiros ao RENTEV garantirá um maior grau de eficácia ao testamento vital, princípio que esteve na base da sua criação pelo artigo 1.º da Lei n.º 25/2012 de 16 de julho.
Referências Bibliográficas:
CAPELAS, M. L. (coord.) (2015), Estudo “Os Portugueses e o Testamento Vital”, Centro de Investigação em Cuidados Paliativos da Universidade Católica Portuguesa e Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (no prelo, documento provisório gentilmente cedido pelo coordenador do estudo).
CNECV (2015), Relatório e Parecer sobre Exclusão Administrativa dos Enfermeiros ao RENTEV, 82/CNECV/2015, disponível em http://www.cnecv.pt/admin/files/data/docs/1433870273_Parecer%2082%20CNECV%202015%20Exclusao%20RENTEV%20Aprovado.pdf
DIÁRIO DA REPÚBLICA (2012), Lei n.º 25/2012 de 16 de julho que Regula as diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, e a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV), disponível em http://www.portaldasaude.pt/NR/rdonlyres/0B43C2DF-C929-4914-A79A-E52C48D....
DIÁRIO DA REPÚBLICA (2014), Portaria n.º 96/2014 de 5 de maio que Regulamenta a organização e funcionamento do Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV), disponível em http://www.portaldasaude.pt/NR/rdonlyres/2258A6C8-BC15-45BE-AB14-A4DD4CA92C08/0/0263702639.pdf.
DIÁRIO DA REPÚBLICA (2014), Portaria n.º 104/2014 de 15 de maio que Aprova o modelo de diretiva antecipada de vontade, disponível em http://www.portaldasaude.pt/NR/rdonlyres/ABE84A16-E029-43DA-A8C8-9B77D96....
NUNES, R. & MELO, H. (2012), Testamento Vital, Coimbra, Almedina.
ORDEM DOS ENFERMEIROS (2015), RENTEV - Ordem dos Enfermeiros pede explicações à Assembleia da República, disponível em http://www.ordemenfermeiros.pt/comunicacao/paginas/rentev-ordem-dos-enfe....
ORDEM DOS ENFERMEIROS (2015), RENTEV - CNECV defende posição da Ordem dos Enfermeiros, disponível em http://www.ordemenfermeiros.pt/comunicacao/Paginas/RENTEV-CNEV-defende-posicao-da-Ordem-dos-Enfermeiros.aspx.
SPMS (2015), RENTEV – Um ano a registar testamentos vitais, disponível em http://spms.min-saude.pt/blog/2015/07/01/rentev-um-ano-a-registar-testamentos-vitais/.

Pedro Quintas, Enfermeiro no ACES Pinhal Litoral, Enfermeiro Especialista em Enfermagem Comunitária e Mestre em Bioética, Membro Suplente do Conselho Regional de Enfermagem da Secção Regional do Centro da Ordem dos Enfermeiros, [email protected]