“Olho para mim e vejo um rapaz normal”
Estima-se que em Portugal cerca de 800 mil pessoas sejam afectadas por doenças raras. Considera-se doença rara aquela que afecta no máximo uma pessoa em cada 2 mil. De uma forma geral calcula-se que entre 6 a 8% da população mundial tenha uma doença rara, o que representa entre 24 e 36 milhões de pessoas na União Europeia, o equivalente ao total das populações da Holanda, Bélgica e Luxemburgo.
Este ano o lema do Dia Mundial, que se assinala amanhã, 28 de Fevereiro, é “Dia-a-dia, de mãos dadas” e visa sensibilizar para os desafios diários de viver com uma doença rara e a importância de todos colaborarem, disponibilizando o seu apoio a estes doentes. Isto porque conforme explicou Marta Jacinto, presidente da Aliança Portuguesa de Associações das Doenças Raras, à agência Lusa, “a grande maioria das doenças raras é genética, grave, crónica e debilitante. Muitos doentes deparam-se com dificuldades e barreiras no dia-a-dia, no acesso às ajudas técnicas, ao número de consultas e tratamentos, ou mesmo ao serviço de urgência. Estas doenças requerem cuidados integrados que, para a grande maioria delas, não existe ainda em Portugal".
A história de Paulo Simão
O Atlas da Saúde decidiu assinalar o Dia Mundial das Doenças Raras com a história verídica de Paulo Simão. Um jovem que sofre de uma doença rara “do espectro das malformações congénitas do sistema vascular e caracterizada por uma tríada – lesão cutânea habitualmente designada por mancha de vinho do porto (que aparece em média em 98% dos casos), varizes (72% dos casos) e hipertrofia óssea e das partes moles (67% dos casos)”, explica José Pereira Albino, cirurgião vascular, médico que acompanha Paulo Simão desde os 5 anos de idade. “Normalmente só está envolvida uma extremidade, mas a síndroma pode ser bilateral ou envolver as extremidades superiores e inferiores”, refere o especialista.
Paulo Simão explica a sua síndroma como “sendo todo maior do lado esquerdo. É como se o corpo tivesse uma linha imaginária, que o divide em dois: o lado direito é normal e o lado esquerdo é maior”.
Desde os 6 meses de gravidez da mãe de Paulo Simão que os médicos “perceberam que algo não estava bem, no entanto, só soubemos o nome da doença tinha eu 7 anos”, conta o jovem.
Paulo Simão lembra-se de estar sempre doente mas “só percebi que algo de grave se passava, quando entrei no 5º ano, porque tinha tantas dores de cabeça e na coluna, que não aguentava”. Desde sempre que as limitações foram de vária ordem: dificuldade em aprender a andar e falar, uma aprendizagem escolar mais lenta que influenciou negativamente a vontade de estudar e as brincadeiras com os amigos eram muito limitadas. “Além de estar sempre doente, eu não gostava de sair de casa. Só me sentia bem em casa. Além disso, não podia fazer esforços, nem educação física, e correr estava fora de questão. Recordo-me que os meus colegas jogavam à bola e eu ficava a olhar, porque não podia jogar com eles”, lembra Paulo Simão.
Síndroma de Klippel-Trenaunay
José Pereira Albino explica que, “os primeiros sintomas detectam-se logo à nascença, sendo a malformação capilar cutânea bem visível, normalmente numa ou em várias extremidades.
Também não é raro que a primeira manifestação seja o aparecimento de varizes logo nos primeiros meses de vida, se a malformação cutânea for pouco exuberante. Quando existe envolvimento da circulação linfática, a deformação do membro é então marcadamente evidente, o que faz que logo na primeira infância seja necessária uma avaliação profunda e o início de uma terapêutica que terá de ser continuada”.
No caso de Paulo Simão as dores são a principal manifestação da doença. “Tenho sempre dores na cabeça, nas pernas (as veias estão sempre muito inchadas) e nos joelhos. Há dias em que andar é complicado. Não tenho controlo nos tremores da mão direita. Há dias em que treme tanto que quase não consigo escrever”.
A doença não tem tratamento específico. Conforme os problemas vão surgindo vão sendo tratados. “Se tenho que fazer alguma cirurgia, faço. Se tenho dores, tomo os medicamentos para as dores, que são comprados com receita médica e tem as comparticipações devidas e inerentes a qualquer utente do SNS”, conta Paulo Simão. Porém existem outros medicamentos, tratamentos ou exames que não têm comparticipação e que a mãe do jovem tem de suportar.
“Quando as formas são ligeiras, o tratamento é simples e baseia-se muito na vigilância periódica. As formas mais graves começam a ser tratadas a partir dos 3 anos de idade e implicam uma actuação multidisciplinar em que a acção do cirurgião vascular e da equipa de ortopedia são extremamente importantes, na tentativa de corrigir as várias deformidades que se vão instalando. É um quadro crónico e que evidentemente necessita de acompanhamento mas muitos doentes numa fase avançada da vida conseguem adaptar-se à situação e viver com limitações, mas não totalmente incapacitados”, explica o especialista.
Os apoios, a discriminação, o bullying…
Desde sempre que Paulo Simão se recorda de ser vítima de bullying. “Foi horrível! Na escola primária chamavam-me nomes como ‘anormal’, ‘caixa de óculos’, ‘4 olhos’; ‘bochechas’; ‘pé grande’… Nesta altura era muito criança e essa fase não me marcou. Só mais tarde, no liceu, é que os maus-tratos, tanto físicos como psicológicos, me marcaram mais”, lamenta o jovem acrescentando, “tenho três situações concretas das quais nunca mais me vou esquecer: Foi quando me cortaram com um x-acto, em plena sala de aula; quando me acenderam um isqueiro na cara; e quando me bateram porque não tinha dinheiro para lhes dar. Hoje em dia, embora mais calmo, ainda não consigo esquecer o que me aconteceu e quando passo por um desses miúdos só sinto raiva e revolta”.
Hoje já adulto, Paulo Simão não se sente revoltado e aceita a doença - “que remédio”, diz o jovem – e chega mesmo a brincar com isso. Tem inclusive uma página na internet onde conta a sua história http://o-olhar.weebly.com. Pode também ser seguido no facebook https://www.facebook.com/psimao1987?fref=ts.
“Os meus colegas de trabalho respeitam-me e gostam de mim tal como eu sou. Hoje em dia já há mais informação. As pessoas são mais civilizadas e aceitam-nos melhor. Eu olho para mim e vejo um rapaz normal. Habituamo-nos a olhar-nos todos os dias e não conseguimos ver os nossos defeitos” ”, comenta.
Na opinião de José Pereira Albino esta não é uma doença que provoque uma incapacidade física marcada. “É uma situação que origina muita angústia nos pais, mas o desenvolvimento acompanhado e tratado destas crianças permite que na idade adulta a situação seja mais controlada. Contudo, estes doentes têm um sofrimento constante, pois o crescimento e a assimetria dos membros origina dores que se podem associar a anomalias múltiplas, pelo que são doentes com muitas necessidades de apoio, sobretudo nas formas mais exuberantes. Dos doentes que tenho orientado, haverá 10 ou 12 que têm necessidades mais marcadas e que deviam ter apoios mais diferenciados, o que infelizmente nem sempre é possível no nosso país”.
Dia Mundial das Doenças Raras
Para assinalar o dia a Aliança Portuguesa de Associações das Doenças Raras promove, a 27 e 28 de Fevereiro, a Conferência Nacional Europlan 2015, na Assembleia da República, iniciativa que visa promover a estratégia nacional para as doenças raras.
Para Marta Jacinto, presidente da Aliança Portuguesa de Associações das Doenças Raras, "é essencial, nomeadamente, a implementação de centros de referência para as doenças raras para melhorar o tempo de diagnóstico, o acompanhamento dos doentes, a formação de profissionais e a investigação".
A Conferência Nacional Europlan é uma iniciativa promovida pela Aliança Portuguesa de Associações das Doenças Raras. “Com esta iniciativa queremos promover a estratégia nacional para as doenças raras e pressionar o governo a traçar um plano de directivas adequado à realidade portuguesa. O nosso país foi um dos primeiros países a aprovar o Plano Nacional para as Doenças Raras. Infelizmente ainda não o implementou, pelo que muitos outros países, anteriormente atrasados, já nos ultrapassaram”, refere Marta Jacinto.