Doença mental:

Estigma, preconceito, distanciamento social e procura de ajuda…

Atualizado: 
24/11/2014 - 17:25
Na sociedade atual aceita-se com facilidade uma doença orgânica não se passando o mesmo com as doenças psiquiátricas. Assim, um dos maiores obstáculos à promoção da saúde mental é o estigma, tendo como resultado a auto e hetero-discriminação das pessoas com doença mental.

A pertença a um grupo social implica que se reconheçam certos comportamentos como integradores e, portanto, é criado um padrão fora do qual se considera a anormalidade, ou seja, o desviante. Neste sentido, uma função protectora será a de criar a sua própria identidade, de pertença a um grupo, fora da qual facilmente se pode destacar a dissemelhança (7). O modo como são percebidos aqueles a quem são atribuídos papéis desviantes é negativo e afeta não apenas o observador, mas também o observado. Trata-se de uma forma de regulamentar os comportamentos “normais” e desviantes. Os papéis desviantes, fonte de estereótipos negativos, tendem a ser objeto de reprovação/desaprovação da sociedade (10) e a fomentar o distanciamento social (afastar o que lhe é diferente). São exemplo de estereótipos associados à doença mental:

- A agressividade (9; 14);

- A baixa confiabilidade;

- Os comportamentos perturbadores;

- A baixa inteligência (1; 14);

- A imprevisibilidade (13);

- A menor competência e menos capacidades de trabalho (1);

- A violência e comportamentos à margem da lei (4; 8; 13; 14).

 

O estigma é, em grande parte, uma percepção negativa da pessoa com doença mental. As pessoas estigmatizadas têm, ou presume-se que tenham, um atributo que as assinale enquanto "diferentes", levando a que sejam desvalorizadas e discriminadas aos olhos dos outros (6; 9). Pese embora, o facto das diferentes formas de caracterizar outrem, serem tentativas de encontrar um padrão. Sucede que, na procura de uma explicação para o comportamento, podemos encontrar justificação em causas externas à pessoa (a culpa é da família, do stress) ou então culpar o próprio pela condição em que se encontra. Esta é uma forma de podermos “desculpabilizar” (ou não) determinado comportamento (5). Como consequência da atribuição a causas externas ao próprio diminui o distanciamento social. Se há crença de causalidade inerente ao próprio (o individuo é culpado por ter aquela doença), verifica-se o efeito inverso. Basta pensarmos em dois exemplos para a mesma doença – a depressão. Exemplo 1: “ela sempre foi ‘fraca’…ela não quer trabalhar”. Exemplo 2: “Com aquela família é normal que não consiga concentrar-se ou trabalhar…o trabalho dela é demasiado exigente”.

 

Assim, falar de estigma em saúde mental implica falar de ignorância, de estereótipos, de discriminação, mas também de preconceitos, pois esquecemo-nos (ou não sabemos) o quanto estas doenças são incapacitantes e não dependem da vontade do próprio.

 

O preconceito está ligado ao processo de socialização do indivíduo e será, portanto, dependente do meio sociocultural onde se insere. O preconceituoso tende a desenvolver diferentes crenças em relação a diversos objectos (doente mental, homossexualidade...) independentemente das características próprias deste. Neste sentido, o preconceito é um juízo preconcebido, manifestado através de uma atitude de discriminação perante pessoas, lugares ou tradições. É indicador de desconhecimento e atribui uma conotação pejorativa ao que lhe é diferente (3).

 

O estigma afeta de diferentes formas a pessoa ou grupo sobre o qual recai. As pessoas são sujeitas a tratamento negativo e discriminação directa (afectando o seu bem-estar, estatuto social e saúde), a processos de confirmação (há tendência para a confirmação das ideias estigmatizantes perante qualquer tipo de comportamento), a activação automática de estereótipos e a processos de ameaça à sua identidade (as ideias estigmatizantes podem não ir de encontro a determinadas características da pessoa, porém, esta será vista como detentora dela) (9). A partir do momento em que o indivíduo é rotulado como ente “desviante” muito dificilmente se pode desprender desta imagem implicando, muitas vezes, situações de isolamento e distanciamento social (10).

Por outro lado, o estigma pode ter a ver com as reacções que a população em geral tem para com a doença mental e/ou com as crenças do próprio relativamente à sua doença.

 

O estigma prejudica as pessoas com doença mental a três níveis, nomeadamente:

- Ao tentar evitar o rótulo a que estão sujeitas há maior dificuldade de adesão aos tratamentos;

- Há um bloqueio no alcance de objectivos de vida podendo apresentar maior dificuldade em lidar com situações de stress;

- A pessoa com doença internaliza ideias estigmatizantes e acredita que é menos valorizada por causa do seu transtorno psiquiátrico (2).

Neste sentido, a discriminação a que as pessoas com doença mental estão sujeitas desenvolve-se de diferentes formas - coerção, segregação, hostilidade, evitamento.

 

Discriminação será, portanto, uma forma de fazer uma distinção a nível social e o preconceito uma avaliação pejorativa da pessoa pelo facto de ser percebida como pertencente a um grupo (12). Neste sentido, a discriminação resultará, em última análise, da expressão do preconceito, mediado pelos estereótipos.

O reconhecimento da doença mental ainda não é feito de forma adequada. Constata-se que das dez causas de incapacidade mais frequentes, cinco são perturbações relacionadas com a saúde mental, estimando-se um incremento das mesmas no futuro (11). Dois em cada dez portugueses sofrem de perturbações psiquiátricas, colocando Portugal no topo da Europa quando associada a perturbações deste foro. A taxa de prevalência remete-nos para cerca de 43% de portugueses a sofrerem de perturbações mentais ao longo da vida (15). Esta questão é crucial, pois sabe-se existir carência de informação, a qual associada a estigma, preconceito e discriminação, se revela um dos grandes obstáculos à intervenção, tanto na prevenção como no apoio à pessoa com doença. Este facto tem implicações cruciais na vida das pessoas, na convivência familiar e em sociedade. É, pois motivo para nos preocuparmos e repensarmos de forma crítica a forma como nos catalogamos e como podemos colocar em risco a nossa saúde, a saúde de pessoas que nos são importantes, bem como a de todos os que nos rodeiam. Não podemos descurar o facto de ser um problema nosso e não do “outro”, pois a probabilidade de contactar ou vir a contactar com alguém com doença (ou vir a ter doença) deve estar bem presente.

 

Bibliografia

  1. Angermeyer, M., C. [et al.] - Public attitudes toward psychiatric treatment. An international comparison. Social Psychiatry And Psychiatric Epidemiology. [Em Linha] Vol. 40 (11) (Nov. 2005), p. 855-864. [Consult. 23 Fev. 2011] MEDLINE with Full Text.
  2. CORRIGAN, P.W - How Clinical Diagnosis Might Exacerbate the Stigma of Mental Illness. National Association of Social Workers. [Em Linha]  Vol. 52, nº I (Jan 2007) [Consult a 1 Dez 2011] Disponível em: http://digilib.bc.edu/reserves/sw722/corrigan722.pdf ISSN: 0037-8046.p. 31-39
  3. Crochik, J. L. - Preconceito, indivíduo e cultura. 3ª ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. ISBN 85-7396-489-8.
  4. Furnham, A. e Pereira, S. - Beliefs about cause, manifestation, and cure of schizophrenia: a cross-cultural comparison. Mental Health, Religion & Culture. [Em Linha] Vol. 11(2) (Mar.2008) [Consult. 13 Maio 2010]. ISSN 1367-4676. CINAHL Plus with full text.  p.173-191.
  5. GLEITMAN, H. - Psicologia. Lisboa. 3ªedição. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa.1986. ISBN: 972-31-0584-5.
  6. GOFFMAN, E. - ESTIGMA - NOTAS SOBRE A MANIPULAÇÃO DA IDENTIDADE DETERIORADA. (S.l.) 4ª ed. 1981. Disponível em: http://www.se-rj.com.br/IBMR/TEXTOS%20IBMR/institucional2011sem01noite/E....
  7. LOUREIRO, L. - Representações para a promoção da saúde mental. Dissertação de doutoramento em Saúde mental - Porto: ICBAS. (2008)
  8. MAGLIANO, L. [et al]. - Perception of patient's unpredictability and beliefs on the causes and consequences of schizophrenia: A community survey. Social Psychiatry & Psychiatric Epidemiology. [Em Linha] vol. 39 Issue 5 (Mai. 2004) [Consult. 13 Maio 2010]. ISSN: 09337954. Academic Search Complete.  p.410-416.
  9. MAJOR B., O’BRIEN, L. T. - The social Psychology of stigma. Annual Review of Psychology. [Em Linha] Vol. 56 Issue 1 (2005). [Consult. 20 Outubro 2011] Disponível em: http://www.psych.ucsb.edu/~major/lab/major_obrien2005.pdf ISSN: 00664308. Academic Search Complete.  p. 393-421
  10. MILES, D.M.B. - Social distance and perceived dangerousness across four diagnostic categories of mental disorder. Australian & New Zealand Journal of Psychiatry. [Em Linha] Vol. 42 (2) (Fev. 2008) [Consult: 10 Mar. 2010]. ISSN: 0004-8674. CINAHL Plus with Full Text. p.126-133.
  11. OMS, 2001 - Mental health: new understanding, new hope. World Health Report 2001. Geneva: World Health Organization. (2001) Disponível em: http://www.who.int/whr/2001/en/whr01_en.pdf.
  12. PEREIRA, C. R.; VALA, J. - Do preconceito à discriminação justificada. Inquisitive Mind Português. [Em Linha] Vol.1, N.º 2-3 (2010) p. 1-13.[Consult.: 18 Jul. 2011] Disponível em: http://www.rui-s-costa.com/iM_pt/artigos/v1_n2-3/pereira_e_vala_2010.pdf.
  13. Speller, H. K. - Mental Health Literacy: A comparative Assessment of Knowledge and opinions of mental Illness between Asian American and Caucasian College Students. (Abril, 2005) Psychology Department, Boston College [Consult. a 10 Dez. 2011] Disponível em: http://dcollections.bc.edu/view/action/singleViewer.do?dvs=1331074039408.... p.67
  14. Veer, J. [et al.] - Determinants that shape public attitudes towards the mentally ill. Soc Psychiatr Epidemiol. [Em Linha] Vol. 41.(4):3 (Abril 2006). [Consult 14 Mai. 2010]. ISSN: 09337954 p.310-317 Academic Search Complete
  15. XAVIER, M.; MATEUS, P., CALDAS-ALMEIDA, J. - Reforming mental health services in Portugal. European Psychiatry. [Em Linha] Vol. 26 Supplement 1 (Março 2011) [Consult a: Janeiro de 2012]. ISSN: 09249338 p. 588-588.

 

Marta Cristina da Silva Gouveia, Enfermeira Especialista em enfermagem de saúde mental e psiquiatria, Mestre em enfermagem de saúde mental e psiquiatria. Centro Hospitalar Tondela-Viseu, unidade de Viseu, Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental, sector feminino e equipa de intervenção no primeiro surto psicótico

 

Este artigo foi escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

 

Autor: 
Marta Cristina da Silva Gouveia - Enfermeira Especialista em enfermagem de saúde mental e psiquiatria
Nota: 
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