Hereditária e rara

Drepanocitose, a doença imprevisível

Atualizado: 
01/07/2019 - 10:06
Anemia grave, crises dolorosas frequentes e tendência para ter infecções são as manifestações mais visíveis da drepanocitose, uma doença genética rara em que há a produção de uma hemoglobina anormal.
Glóbulos vermelhos a ilustrar a drepanocitose

Drepanocitose. Uma palavra de difícil pronunciação. O seu significado mais difícil de explicar e até de compreender. É nome de doença rara e caracteriza-se por “uma anomalia genética da produção de hemoglobina nos glóbulos vermelhos”, explica Manuel Pratas, presidente da Associação Portuguesa de Pais e Doentes com Hemoglobinopatias (APPDH).

Dito de outra forma, “na drepanocitose, também conhecida por anemia de células falciformes, há a produção de uma hemoglobina anormal designada hemoglobina S que irá, perante diversos factores, transformar o normal glóbulo vermelho arredondado e maleável, num glóbulo rígido e com o formato de uma ‘foice’ ou lua em quarto minguante - daí o seu nome de falciforme”.

Em Portugal existem, segundo dados de um estudo de 2011, cerca de 590 doentes com drepanocitose. Contudo, a percepção que a APPDH tem no terreno e através de dados concretos das unidades de saúde é que estes números continuam a crescer.

Já a prevalência nacional de portadores de hemoglobinopatias (é importante salientar que um portador não é uma pessoa doente mas apenas alguém que transporta essa anomalia genética que, na conjugação de dois portadores, poderá gerar um filho doente; um portador é uma pessoa saudável), segundo o estudo mais recente (início da década de 90) rondaria os 2 a 3%, mas que a APPDH acredita que actualmente rondará os 4 a 5%.

A drepanocitose é uma doença originária de África, muito incapacitante e que implica um constante e regular acompanhamento multidisciplinar pelas crises que podem resultar em complicações respiratórias, hepáticas, renais, cardíacas...

Sintomas da drepanocitose

Dependendo da percentagem de hemoglobina S que cada doente apresenta, assim a manifestação da doença poderá ser mais leve ou mais severa, mais precoce ou mais tardia.

Conforme explica Manuel Pratas, “há doentes em que a doença se manifesta logo à nascença e outros em que só já na fase jovem ela começa a ter manifestações”, sublinhando que não existe um doente igual ao outro pois os factores desencadeantes das crises de dor, que são comuns à maioria deles, têm, em cada um, um impacto mais real do que noutro.

Estas crises são desencadeadas por factores muito variados, nomeadamente:

  • Desidratação, que torna o sangue mais espesso e favorável à formação de cadeias de bloqueio devido à forma da células;
  • Mudanças climatéricas, frio ou calor extremos;
  • Factores psicológicos, stress, angústia, euforia, tristeza...;
  • Cansaço por exercício físico mesmo que por vezes seja leve, entre outros.

As crises, diz o presidente também ele doente, “são imprevisíveis e podem ocorrer a qualquer hora e em qualquer parte do corpo onde haja um vaso sanguíneo e se possa verificar um bloqueio”.

Estes episódios geralmente implicam quebras significativas dos níveis de hemoglobina e, não é rara a necessidade de os doentes serem submetidos a transfusões de sangue para restabelecer a sua situação clínica.

Diagnóstico e prevenção da drepanocitose

Actualmente através do diagnóstico pré-natal é possível saber se o feto é portador de uma série de doenças. No caso da drepanocitose a identificação é realizada através de uma análise sanguínea designada por electroforese das hemoglobinas. No caso de o resultado ser positivo, devem ser realizados outro tipo de exames adicionais.

A prevenção da doença pode ser feita através da identificação da conjugação de dois portadores. Ou seja, “sendo esta uma doença genética e hereditária, em que a situação de portador não tem qualquer manifestação clínica, a doença passa a existir num descendente de dois portadores, uma vez que há a transmissão da anomalia genética de dois portadores”, explica Manuel Pratas, acrescentando que a realização de um rastreio eficaz nas populações onde a prevalência é maior seria fundamental para que os portadores sejam detectados e devidamente informados dessa situação.

Este rastreio, diz o responsável “está devidamente definido na Circular Normativa nº18/DSMIA de 2004 da Direcção-Geral da Saúde. No entanto, e infelizmente, a realidade actual é que no terreno esta indicação não está a produzir os efeitos previstos, principalmente por não estar a ser devidamente efectivada nas áreas de maior prevalência onde deveria ocorrer”.

“A questão essencial é a de poder dar a estes portadores toda a informação e esclarecimentos sobre o que é esta doença e o impacto que um filho doente pode ter, não apenas para ele mas para toda a família”.

Tratamento e qualidade de vida

A cura da drepanocitose, tal como da talassémia (as duas hemoglobinopatias), só é possível através do transplante de medula óssea. Porém, devido aos elevados riscos que comporta, raramente é feito. “Geralmente só em casos extremos ou quando existe um dador 100% compatível, mas mesmo assim, a opção habitual dos pais é a de não arriscar”, alerta Manuel Pratas.

Contudo, nas últimas décadas surgiram terapêuticas que permitem a estabilidade clínica dos doentes, seja na manutenção de níveis de hemoglobina a quase normais, seja na redução dos elevados níveis de ferro que os doentes vão acumulando ao longo dos anos devido às diversas transfusões de sangue a que são sujeitos.

“Esta quelação (extracção) do ferro do organismo - especialmente em órgãos vitais como o coração, o fígado, pâncreas e veias do cérebro - que até há poucos anos era feita de modo muito invasivo e doloroso, através de uma bomba infusora que injectava um medicamento durante 8 a 12h por dia, 5 a 7 dias por semana, praticamente desde os primeiros anos de vida, hoje em dia pode ser realizada através de terapêutica oral, indolor e bastante eficaz”, congratula o presidente, considerando que, “ao longo das últimas décadas houve sem dúvida uma significativa melhoria da qualidade de vida de quem padece de uma drepanocitose, mas a sua imprevisibilidade de manifestação leva a que psicologicamente seja bastante devastadora”.

É uma doença que ao longo dos anos vai deixando marcas importantes, consequência dos episódios de crise e constantes internamentos hospitalares, dos tratamentos por vezes agressivos, da consciência de um futuro quase sempre incerto.

Na opinião de Manuel Pratas, apesar de todo o avanço científico e terapêutico ligado à doença, na qualidade de vida dos doentes está, ainda hoje, muito aquém do desejável. Isto porque, embora clinicamente um doente possa estar minimamente estável, há que ponderar que a qualidade de vida é muito mais que isso. “É também ter um percurso escolar regular e normal, ter acesso em igualdade de oportunidades ao mercado de trabalho, aspirar a formar uma família estável e feliz, ter uma vida social como qualquer outra pessoa...”, diz acrescentando, “se a isto viermos a somar situações complicadas de problemas ósseos que derivem, por exemplo, em colocação de próteses ou na necessidade de utilização de outras ajudas técnicas, o panorama dessa qualidade agrava-se significativamente”.

De forma geral, os doentes com esta patologia, à semelhança de outras doenças igualmente raras, são pessoas que procuram, enquanto não se deparam com os seus episódios graves da doença, ser bastante activos, criativos e motivados para ter acesso ao que todos os outros jovens ou adultos ditos saudáveis têm. “Procuram fazer valer todos os momentos normais que a sua doença lhes proporciona. Procuram, como uma doente uma vez referiu, ser felizes”.

Por expressa opção do autor, o texto não respeita o Acordo Ortográfico

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Autor: 
Célia Figueiredo
Nota: 
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