Entrevista

Doenças Congénitas da Glicosilação: falta de informação é um dos principais entraves ao diagnóstico

Atualizado: 
08/08/2019 - 11:20
Não se sabe ao certo quantos doentes existem em Portugal. O que se sabe é que as Doenças Congénitas de Glicosilação são doenças extremamente complexas e com uma elevada taxa de mortalidade em idade pediátrica. Em entrevista ao Atlas da Saúde, as especialistas Esmeralda Martins e Joana Correia da Unidade de Doenças Metabólicas do Centro Hospitalar do Porto explicam tudo que é preciso saber sobre o tema – o que são, como se manifestam e qual o tratamento.

O que são as Doenças Congénitas da Glicosilação? E qual a sua incidência? Em Portugal quantos doentes existem?

Os defeitos congénitos da glicosilação são doenças metabólicas, raras e hereditárias, sendo atualmente conhecidos cerca de 130 tipos diferentes. São doenças complexas que, por norma, atingem mais do que um órgão, com uma grande heterogeneidade entre si.

Não se sabe a real prevalência deste grupo de doenças, que está claramente subdiagnosticado, mas estima-se que na Europa é de 0,1-0,5/100.000, enquanto que em Portugal existem cerca de 90 doentes diagnosticados.

Como se diagnosticam os defeitos congénitos de glicosilação?

O diagnóstico dos defeitos congénitos da glicosilação é um desafio, dado a grande variabilidade de manifestações e a ausência de um exame diagnóstico global e único. Muitas vezes é utilizado um teste de rastreio, a focagem isoelétrica de transferrina, mas que apenas é positivo em cerca de metade dos casos. Assim, a suspeição clínica é fundamental, devendo ser equacionado como hipótese diagnóstica em qualquer quadro clínico inexplicado.

 E como ocorrem estes defeitos?

A nível das células, um grande número de proteínas e de lípidos encontra-se ligado a cadeias de açúcares, chamados glicanos, que são importantes para a aquisição da sua forma, estabilidade e funcionamento, nomeadamente na interação com outras moléculas. A este processo designa-se glicosilação.

Nestas doenças ocorre um erro genético que altera a síntese e acoplamento dos glicanos. Como as glicoproteínas e glicolípidos finais têm localizações e funções muito diferentes dentro das células, dependendo do defeito e, consequentemente do tipo e número de glicoproteínas/glicolípidos afetados, podemos ter doenças com vários órgãos atingidos.

Tratando-se de patologias que atingem vários órgãos e sistemas, quais os sintomas mais frequentes? Que sinais podem indicar a presença destas doenças?

De uma forma geral, o atingimento neurológico é o mais frequente (por exemplo ataxia, alteração do tónus muscular, atraso do desenvolvimento ou epilepsia), mas pode não estar presente. É também comum o envolvimento oftalmológico, esquelético e hepático.

Existe ainda um conjunto de manifestações clínicas sugestivas deste grupo de doenças, nomeadamente dismorfias faciais típicas, a presença de mamilos invertidos, estrabismo e a distribuição anormal da gordura corporal. Muitos doentes apresentam também alterações analíticas associadas à hipoglicosilação, que são pistas diagnósticas (por exemplo a diminuição de alguns factores da coagulação) e alterações na ressonância magnética cerebral (por exemplo a hipoplasia do cerebelo).

A partir de que idade podem ser diagnosticadas?

Podem ser diagnosticadas em qualquer idade, desde o nascimento até à idade adulta.

Há, no entanto, casos que podem ser detetados em idade adulta. Porque é que isto acontece?

Muitas vezes são casos em que os doentes apresentam sintomas mais ligeiros ou não típicos, o que dificulta o diagnóstico.

Quais os principais desafios no que diz respeito ao diagnóstico?

A ausência de um marcador bioquímico específico que possa ser usado para rastreio em todos os tipos de defeitos congénitos de glicosilação e a grande variabilidade clínica.

Que exames são necessários para se obter o diagnóstico definitivo da doença? Podem ser realizados em qualquer unidade hospitalar ou há centros de referência específicos?

O diagnóstico definitivo da doença passa maioritariamente por estudos genéticos que são realizados em laboratórios específicos, muitas vezes trabalhando em rede com outros centros especializados de vários países.

Tratando-se de doenças altamente incapacitantes, com elevada taxa de mortalidade pediátrica e com um impacto negativo na qualidade de vida dos doentes, qual a importância do diagnóstico precoce? Faz diferença o momento em que são diagnosticadas?

Mesmo quando não existe um tratamento específico para a doença, o diagnóstico precoce permite um melhor acompanhamento do doente, com uma intervenção multidisciplinar, ajustada ao seu quadro clínico e comorbilidades. Por outro lado, conhecendo qual a patologia em causa e qual a sua evolução clínica habitual, podemos antecipar e tentar evitar o aparecimento de novas complicações.

Quais as principais complicações associadas a estas doenças?

Depende de quais os órgãos atingidos. Algumas complicações neurológicas comuns são a ataxia, que causa má coordenação dos movimentos dos membros e dificuldades na marcha, epilepsia, o atraso de desenvolvimento e dificuldades de aprendizagem. São ainda frequentes uma má evolução do peso, dificuldades alimentares, episódios de vómitos ou diarreia.

A probabilidade de haver episódios infeciosos em maior número ou mais graves, é maior em vários defeitos da glicosilação.

De referir ainda as alterações da coagulação, com maior tendência a eventos trombóticos ou hemorrágicos.

Existe tratamento para as Doenças Congénitas de Glicosilação? Quais os principais cuidados a ter?

Atualmente apenas estão disponíveis tratamentos para alguns tipos de defeitos congénitos da glicosilação, que incluem a suplementação dietética (por exemplo galactose no PGM1-CDG e manose no MPI-CDG) ou a transplantação de órgãos (por exemplo transplante hepático no MPI-CDG), havendo, contudo, a expectativa de que a investigação em curso possa permitir desenvolver novas terapêuticas.

Nos restantes casos, existem tratamentos dirigidos ao controlo dos sintomas e prevenção, que permitem melhorar a qualidade de vida dos doentes e seus cuidadores. Para isso, é fundamental que os doentes sejam acompanhados por uma equipa multidisciplinar e num centro com experiência no seguimento destas doenças.

Que cuidados complementares podem ser necessários na gestão das doenças?

Para além dos cuidados médicos, é necessário um apoio personalizado e com recurso a terapias adequadas, de forma a garantir que seja atingido o potencial máximo de cada criança. 

A integração na escola deve ser planeada e ajustada com um currículo individualizado e adaptada à realidade de cada criança.

No adulto, quando possível, deve ser apoiada e fomentada a integração a nível laboral, através de equipas multidisciplinares que além do apoio clínico nas diversas vertentes, garantam também o apoio social.

A formação e atualização das famílias e profissionais, através da organização de ações de formação e informação escrita sobre a doença é também de extrema importância.

No âmbito deste tema, que mensagem gostaria de deixar? Quais as principais recomendações?

As doenças congénitas da glicosilação são doenças raras, e o reduzido número de doentes, muitas vezes dispersos geograficamente, associado ao desconhecimento sobre este grupo de doenças, levanta muitas vezes entraves ao diagnóstico.

A divulgação através de redes/grupos de médicos e associações de doentes é fundamental para uma maior visibilidade e informação sobre este grupo de doenças, ajudando a que o diagnóstico seja mais precoce. Por outro lado, a partilha de informação sobre os mecanismos da doença, a história natural, variabilidade dos sinais e sintomas é fundamental para o sucesso e progressão da investigação científica e desenvolvimento de novas terapias.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
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