Síndrome de Hunter: diagnóstico chega em média 7 anos após primeiros sintomas
Em que consiste a Síndrome de Hunter e qual a sua incidência?
A Síndrome de Hunter é uma mucopolissacaridose (MPS tipo II), uma doença rara, genética que se caracteriza pela deficiência da idorunase-2-sulfatase (I2S), uma das enzimas necessárias à degradação de substâncias chamadas de glicosaminoglicanos (GAG). Na ausência de doença, estas enzimas degradam estas macromoléculas em componentes mais pequenos permitindo a sua assimilação pelo organismo. No entanto, quando o funcionamento destas enzimas se encontra comprometido, os GAG acumulam-se nos lisossomas das células, conduzindo às manifestações da doença.
A MPS II foi descrita pela primeira vez pelo médico canadiano Dr. Charles Hunter em 1917. É uma doença genética ligada ao cromossoma X, atingindo por isso, sobretudo, os homens e muito raramente as mulheres.
É uma doença de depósito lisossomal muito rara, sendo a sua incidência estimada em 1 para cada 162 mil nados vivos. Em Portugal, não dispomos de dados atualizados mas desde a década de 80 foram diagnosticados menos de 100 doentes com MPS.
Quais as principais manifestações clínicas da doença?
A Síndrome de Hunter é uma doença progressiva e multissistémica. Nem todas as pessoas com esta síndrome são afetadas da mesma forma, sendo as manifestações clínicas diversas: alterações faciais, cabeça com volume maior do que o habitual, abdómen aumentado, aumento do fígado e do baço, alterações da audição, comprometimento das válvulas cardíacas e da função cardíaca, obstrução das vias respiratórias, apneia do sono, hérnias, alterações da mobilidade por alterações articulares, alterações ósseas múltiplas e baixa estatura.
Na maioria dos casos (> 60%) há comprometimento do Sistema Nervoso Central (SNC), podendo a doença cursar com epilepsia, défice de atenção, alterações de comportamento, alterações do sono, atraso cognitivo, entre outros).
Conforme a existência ou não de atingimento do SNC, foram definidas duas formas de expressão da doença: uma forma atenuada (sem envolvimento do Sistema Nervoso Central) e uma forma grave, com envolvimento do Sistema Nervoso Central.
A partir de que idade pode ser diagnosticada?
Sendo uma doença genética, o seu diagnóstico pode ser realizado ainda in utero, através de biopsia das vilosidades coriónicas. O aconselhamento genético das famílias com diagnósticos de Síndrome de Hunter ou qualquer outra das MPS é imperativo.
As crianças com MPS II habitualmente não apresentam sinais ou sintomas de doença aquando do nascimento. Os primeiros sintomas mesmo na forma mais grave são habitualmente somáticos e surgem em média aos 1,5 anos de vida e são, habitualmente, inespecíficos (ex. otites de repetição, hérnias abdominais). Este facto, associado à raridade da doença, faz com que o diagnóstico não seja imediato. Estima-se que o tempo até ao diagnóstico a partir do aparecimento dos primeiros sinais e sintomas é de 7 anos.
Como é feito o seu diagnóstico?
A suspeita clínica é a melhor forma de iniciar o diagnóstico de todas as doenças. Após a integração de todos os sinais e sintomas, o teste de diagnóstico standard é a determinação da atividade enzimática da I2S.
Em Portugal, quando um médico suspeita desta Síndrome tem, atualmente, disponível uma fácil e acessível ferramenta de diagnóstico. Inserido no projeto FIND, que resulta de uma parceria entre a secção de Doenças Hereditárias do Metabolismo da Sociedade Portuguesa de Pediatria e o Instituto Ricardo Jorge, o diagnóstico pode ser efetuado através de determinação enzimática em sangue colhido em cartão (como no conhecido teste do pezinho). O kit de diagnóstico é gratuito e poderá ser solicitado pelo médico através do correio electrónico: [email protected].
Os resultados devem posteriormente ser confirmados por teste genético.
Tratando-se de uma doença progressiva, qual o seu prognóstico? E de que modo esta síndrome condiciona a vida do doente?
A acumulação dos GAG de forma multissistémica condiciona alterações virtualmente em todos os órgãos e sistemas, sendo os sintomas muito variados. Na forma mais grave apresenta um enorme impacto na redução da qualidade e esperança de vida (sobrevida média de aproximadamente 15 anos).
Quando não diagnosticada e instituídas medidas terapêuticas de forma atempada, a Síndrome de Hunter torna-se progressiva e muito incapacitante. Para além das alterações físicas, as alterações de concentração e aprendizagem, bem como alterações psicológicas têm de ser monitorizadas de perto. É mandatório, em particular em doentes com formas graves, que sejam integrados em ambiente com estímulos enriquecedores desde idades precoces, por forma a atrasar a deterioração cognitiva.
Qual a esperança média de vida dos doentes?
A esperança média de vida nas formas mais graves é de 10 a 20 anos. Nas formas atenuadas também se encontra reduzida, mas habitualmente os doentes atingem a idade adulta e sem alterações cognitivas As doenças cardíacas e a obstrução das vias aéreas são as principias causas de mortalidade em ambas as formas.
Em que consiste o seu tratamento?
Como ainda não há cura para a síndrome de Hunter, o tratamento centra-se na gestão de sinais, sintomas e possíveis complicações, de forma a proporcionar alívio sintomático e melhoria da qualidade de vida à medida que a doença progride.
Os tratamentos dirigidos, atualmente disponíveis, a terapêutica enzimática de substituição (TES) e o transplante de células hematopoiéticas têm demonstrado bons resultados retardando a progressão da doença e diminuindo a gravidade da sua expressão. No entanto, a TES não tem resultados nos sintomas neurológicos/cognitivos e o transplante tem um efeito muito limitado.
A eficácia destes tratamentos depende muito da precocidade do diagnóstico, que é bastante difícil. O atraso no diagnóstico impede uma intervenção atempada, que poderia evitar a rápida progressão da doença e prevenir a ocorrência de danos irreversíveis.
Qual a importância do diagnóstico pré-natal? A análise do gene I2S está incluída nos rastreios convencionais?
A análise do gene I2S não está incluída nos rastreios convencionais portugueses. Mas, sendo uma doença genética, o seu diagnóstico pode ser realizado ainda in utero, através de biopsia das vilosidades coriónicas ou logo à nascença de forma semelhante às doenças testadas no teste do pezinho.
Independentemente da altura em que se estabelece diagnóstico, o aconselhamento genético das famílias com diagnósticos de Síndrome de Hunter ou qualquer outra das MPS é sempre imprescindível.
Um diagnóstico atempado é sempre importante porque permite a rápida instituição da terapêutica.
Que apoios têm estes doentes e suas famílias, no nosso país?
A realidade das Doenças Raras no nosso país tem vindo a evoluir de uma forma significativa nos últimos anos. O Programa Nacional de Doenças Raras, a constituição de Centros de Referência de Doenças Hereditárias do Metabolismo e Doenças Lisossomais de Sobrecarga e da Comissão Coordenadora do Tratamento das Doenças Lisossomais de Sobrecarga, trouxeram maior apoio clínico, científico e terapêutico a estes doentes de norte a sul do país.
As Associações de doentes nacionais, como por exemplo a Associação Portuguesa das Doenças do Lisossoma e a Raríssimas, e redes internacionais como a de MPS, têm-se diferenciado e apostado no apoio personalizado às diferentes vertentes das necessidades dos seus associados, bem como à educação para a saúde e a promoção da literacia em saúde.
Mas apesar de todas estas alterações que se assumem como positivas, muito caminho há ainda a percorrer, para suprir as necessidades destes doentes e famílias.
Alguns projetos começam a surgir, como por exemplo a Casa dos Marcos, pensada para ser um centro de recursos capaz de dar uma resposta integrada aos doentes com Doença Rara. A Rede Nacional de Cuidados Continuados e Integrados (RNCCI) já contempla 10 camas em Unidade de Longa Duração e Manutenção (ULDM) para estes doentes.
Para terminar, qual o impacto socioeconómico desta síndrome?
As doenças raras não afetam apenas os doentes, mas também têm um grande impacto nas famílias, amigos, cuidadores e na sociedade em geral.
Em Portugal, a verdadeira dimensão do problema não é conhecida, dada a inexistência de um registo único adequado a estas doenças, bem como o reduzido número e a extensão dos estudos epidemiológicos realizados até à data.