Doença genética rara

Síndrome de Ondine: quando o simples ato de dormir o coloca em risco a vida

Atualizado: 
15/03/2024 - 11:10
Imagine que adormece e deixa de respirar? É o que acontece a quem sofre de Síndrome de Ondine, uma doença genética rara, e sem tratamento curativo, que se traduz numa disfunção do sistema nervoso autónomo que afeta a respiração durante o sono.

Também conhecida por Síndrome de Hipoventilação Central Congénita, esta doença é causada por mutações num gene chamado PHOX2B, localizado no cromossoma 14, estimando-se que afete "um em 150.000 ou um em 200.000 recém-nascidos", o que a torna uma condição bastante rara. No entanto, admite-se "que a incidência desta síndrome esteja subestimada" uma vez que os casos de apresentação tardia que podem estar por diagnosticar.

Segundo a pediatra Núria Madureira, esta síndrome caracteriza-se por "uma falência no controlo autonómico da ventilação, caracterizando-se por hipoventilação central e ausência da normal resposta à diminuição do oxigénio e acumulação de dióxido de carbono". "A maior parte destes doentes tem uma respiração normal quando estão acordados, mas quando adormecem, e o único controlo da ventilação é o autonómico, deixam de respirar ou respiram mais lentamente do que é necessário. Com isso, há diminuição do oxigénio e acumulação de dióxido de carbono no sangue e o suposto seria respirar mais depressa e, eventualmente, acordar. Nestes doentes isso não acontece, havendo risco de morte", começa por explicar. 

Na maioria dos casos, acrescenta, "a síndrome manifesta-se nos primeiros dias de vida com apneias,  ou paragens na respiração, durante o sono ou acordados, episódios de cianose e alteração nos gases do sangue com acumulação de dióxido de carbono. A gravidade da situação justifica a necessidade de ventilação mecânica, ou seja, os bebés têm de ser entubados e respirar com a ajuda de um ventilador". 

Quando a síndrome só se manifesta depois do 1º mês de vida denomina-se síndrome de hipoventilação central congénita de apresentação tardia ou Late-Onset SHCC. "Estes doentes têm uma forma mais ligeira da síndrome, em que a hipoventilação só se manifesta quando há um desafio respiratório, ou seja, quando há infeções respiratórias graves, ou numa anestesia. Nestas circunstâncias, estes doentes podem apresentar uma insuficiência respiratória grave com necessidade de suporte ventilatório e eventual risco de vida", esclarece quanto às formas de manifestação. 

Outra característica, é poder afetar outros sistemas para além do respiratório. "A maioria dos doentes com síndrome de hipoventilação central congénita apresenta outras manifestações de desregulação no sistema nervoso autónomo. Estas manifestações podem ser cardíacas (há risco de arritmias potencialmente fatais), gastrointestinais (com a possível associação à doença de Hirschprung), espasmos do choro com risco de paragem cardiorrespiratória, alterações na regulação da temperatura corporal com sudorese excessiva ou ausência de febre nas infeções, problemas oftalmológicos como estrabismo, ou dificuldades escolares", enumera a pediatra adiantando que, em alguns doentes, há um risco acrescido de desenvolvimento de neuroblastomas ou ganglioneuromas. 

O seu diagnóstico é realizado através de teste genético, "para saber se há mutações no gene PHOX2B", quando há suspeita da presença desta síndrome. No entanto, a especialista admite que sendo esta uma patologia rara, o desafio inicial é, muitas vezes, ter a suspeita deste diagnóstico. "Ainda assim, com os avanços no conhecimento médico, a maioria dos casos graves e típicos já tem um diagnóstico muito precoce. Antes da identificação do gene envolvido nesta síndrome, o diagnóstico era difícil, implicava a exclusão de outras doenças e a realização de uma polissonografia. Atualmente, o diagnóstico através de testes genéticos é relativamente fácil e rápido", refere.  

Núria Madureira, salienta, ainda que "as mutações ocorrem na maior parte dos casos de novo, isto é, os pais não têm a mutação e ela ocorre durante a formação das primeiras células do futuro bebé", pelo que não é possível o diagnóstico pré-natal. "Só quando já há um irmão, ou um dos pais atingidos pela síndrome, é que este diagnóstico se pode equacionar. Estas situações devem ser orientadas em consulta de genética para melhor esclarecimento da necessidade, ou possibilidade, de testes genéticos pré-natais", explica a médica. 

No que diz respeito ao tratamento, esta síndrome leva à necessidade de viver com suporte ventilatório. "Estes doentes vão depender de suporte respiratório durante o sono e, eventualmente, acordados, durante toda a vida. Na maioria dos casos, o suporte ventilatório inicia-se logo nos primeiros dias de vida e os bebés ficam internados até terem condições de manter esse suporte ventilatório em casa", revela Núria Madureira. 

De acordo com a especialista, "as recomendações internacionais preconizam que o suporte ventilatório seja através de traqueostomia e ventilação invasiva nos casos graves e nos primeiros anos de vida. A traqueostomia consiste num orifício na traqueia supraesternal, onde se coloca uma cânula que se vai conectar ao ventilador quando a criança está a dormir". Em idade escolar, explica, "habitualmente, encerra-se a traqueostomia e passa-se para ventilação não invasiva, ou seja, com o ventilador ligado a uma máscara que se coloca no nariz, ou no nariz e na boca". 

Este é um processo desafiante que envolve muitas adaptações, quer para as famílias quer para as equipas médicas que os acompanham, ao longo das várias etapas do crescimento. 

"Os principais desafios no tratamento estão relacionados com a total dependência do suporte ventilatório durante o sono. Sem ele, os doentes podem morrer. Este suporte ventilatório representa uma sobrecarga muito importante para os pais que, além de terem de tratar de um bebé, têm de garantir cuidados especializados de saúde", revela.  

Para os médicos, "o desafio é garantir que o suporte ventilatório é o mais adequado; ter particular atenção quando há doenças agudas, porque a hipoventilação pode agravar-se e condicionar risco de vida; e garantir o diagnóstico e orientação adequada das outras possíveis manifestações da síndrome". 

"À medida que a criança cresce, vão-se colocando outros desafios. O principal é explicar à criança, e depois ao adolescente, as limitações relacionadas com a sua doença e garantir uma vida o mais próxima do normal possível", acrescenta a pediatra. 

"Tal como em todas as outras doenças crónicas, é fundamental explicar aos pais em que consiste esta síndrome e quais as suas implicações. O internamento destes bebés é prolongado, para que se atinja a estabilidade clínica e, durante esse período, devem ser várias as conversas com os pais.  Assim que possível, começam os ensinos aos pais sobre a traqueostomia, os ventiladores, a necessidade de vigilância com monitores cardiorrespiratórios e até as manobras de reanimação cardiorrespiratória. A alta só é possível quando os pais estão preparados para assegurar o suporte ventilatório em casa", afirma quando questionada sobre como se preparam os pais para a convivência com esta síndrome. 

«Não sabia como iria ser o futuro da minha bebé»

Foi após descobrir que a filha sofria de Síndrome de Hipoventilação Central Congénita, "uma síndrome muito rara sobre a qual não sabia nada", que Daniela Rosa e Lourenço sentiu que tinha o dever de "colocar em contacto as pessoas e famílias portuguesas que vivem com esta síndrome". A SINGELA, uma associação que se foca "na participação em atividades de divulgação e consciencialização da síndrome, junto da comunidade, incluindo a comunidade médica e científica" e que fomenta "o contacto entre as famílias portuguesas que lidam com a síndrome", nasce com esta missão. Entando presente "em redes nacionais de saúde e doenças raras, bem como em redes internacionais de partilha de conhecimento sobre síndrome de Ondine, com o intuito de estar a par de todos os desenvolvimentos científicos e clínicos nesta área". 

"Não conhecia ninguém que tivesse passado pelo que estava a passar com a minha família. Não sabia como iria ser o futuro da minha bebé. Com sorte, através de um amigo, tive contacto com a mãe de uma menina portuguesa, o que foi muito importante para mim", recorda a presidente da associação que enumera os vários desfios que as famílias destas crianças enfrentam: 

"Principalmente nos primeiros anos de vida, as pessoas com Síndrome de Hipoventilação Central Congénita estão dependentes de uma vigilância constante e de cuidados específicos e exigentes. É comum que um dos pais se veja obrigado a fazer uma pausa na sua carreira profissional, de forma a assegurar os cuidados da criança, que, muitas vezes, não tem possibilidade de frequentar uma creche ou jardim de infância. Há uma tendência para o isolamento e um acumular de cansaço físico e psicológico decorrente dos cuidados constantes, da possível necessidade de terapias, da ida a várias consultas e dos frequentes internamentos hospitalares. Penso que a grande alteração na vida familiar, profissional, económica e social, é um dos principais desafios das famílias", revela. 

"É importante reiterar que grande parte das famílias com crianças que têm Síndrome de Hipoventilação Central Congénita (principalmente, as que estão dependentes de ventilação invasiva) estão condicionadas na vertente social, quer pelas dificuldades de mobilidade com os aparelhos necessários, quer pelo risco acrescido de infeções graves. Normalmente, as crianças não frequentam a creche e o jardim de infância e passam grandes períodos de tempo no hospital, o que condiciona a sua socialização", sublinha, afirmando que "de momento, nestes estabelecimentos, é praticamente impossível assegurar a presença de um profissional qualificado e em exclusivo para as crianças com Síndrome de Hipoventilação Central Congénita". 

No que diz respeito ao tratamento, e uma vez que este doentes estão dependende do uso de dispositivos de ventilação, "no geral" a comparticipação dos materiais e aparelhos para esse fim, é um aspeto muito importante, "caso contrário, seria muito difícil que uma família pudesse assegurar tudo isso, principalmente, quando um dos membros tem de parar a sua atividade profissional, vendo o rendimento familiar diminuir". "Economicamente, é importante referir a dependência de apoios da Segurança Social e do Sistema Nacional de Saúde", reforça. 

Por todos estes motivos, Daniela Rosa e Lourenço, quer mostrar a pais e familiares que lidam com esta síndrome rara que "não estão sozinhos". "A SINGELA tem uma rede que pretende auxiliar-vos e representar-vos, pelo que estamos ao dispor para esclarecer qualquer dúvida. As famílias, ou qualquer pessoa, podem entrar em contacto connosco". 

 
Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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