Imunodeficiência combinada grave (IDCG): "sem tratamento, esta condição é geralmente fatal no primeiro ano de vida"
Estima-se que em todo o mundo cerca de 6 milhões de pessoas sofram de Imunodeficiências Primárias (IDP) e que entre 70 a 90% dos casos se encontram suddiagnosticados. Neste sentido, começo por perguntar o que dificulta o seu diagnóstico?
O diagnóstico das Imunodeficiências Primárias (IDP) tem vários desafios. Em primeiro lugar, estamos a falar de doenças raras, o que significa que muitos profissionais de saúde podem não estar familiarizados com os seus sintomas específicos. Além disso, as IDP podem manifestar-se de formas muito diversas, muitas vezes “imitando” outras condições mais comuns, o que pode levar a diagnósticos errados ou demorados. Outro desafio é a falta de consciencialização geral sobre estas doenças, tanto entre o público como na comunidade médica. Muitas vezes, os sintomas são tratados isoladamente sem se considerar a possibilidade de uma condição relacionada com o sistema imunitário.
Para que possamos compreender a importância deste tema, o que são as Imunodeficiências Primárias?
As IDP constituem um grupo diversificado de mais de 450 doenças genéticas raras (e todos os anos vão descobrindo mais) que afetam o sistema imunitário. Basicamente, nestes doentes, o sistema de defesa do corpo não funciona de forma normal. Grande parte delas resumem-se num défice de anticorpos, em que o organismo não é capaz de produzir os anticorpos necessários para combater as infeções que vão sofrendo ao longo da sua vida. São pessoas que ficam mais suscetíveis a infeções, que podem ser mais frequentes, mais graves. Além disso, algumas IDP também podem aumentar o risco de doenças autoimunes e inflamação crónica. É importante entender que as IDP são doenças congénitas, ou seja, as pessoas nascem com elas, mesmo que os sintomas só se manifestem mais tarde. Isto distingue-as das imunodeficiências secundárias, que são adquiridas ao longo da vida.
A partir de que idade se podem manifestar?
As IDP podem manifestar-se em qualquer fase da vida, desde o nascimento até à idade adulta. No entanto, é mais comum que os sintomas se tornem evidentes durante a infância, especialmente nos primeiros anos de vida. Algumas formas graves de IDP que podem apresentar sintomas logo nas primeiras semanas ou meses de vida. Outras IDP podem se manifestar-se mais tarde na infância, com crianças a sofrer de infeções recorrentes. É importante notar que algumas formas de IDP podem não se manifestar até à adolescência ou mesmo na idade adulta. Nestes casos, as pessoas podem ter tido uma infância relativamente saudável e só começar a sentir sintomas mais tarde na vida. Como já disse, esta variabilidade na idade de manifestação é um dos fatores que torna o diagnóstico desafiante.
Embora existam centenas de diferentes tipos de Imunodeficiências Primárias, e de gravidade variável, quais são os primeiros sinais ou sintomas que lançam o alerta para o seu diagnóstico? A que devemos estar atentos?
Os sinais e sintomas das IDP podem variar significativamente, mas existem alguns sinais de alerta que devem ser considerados. O mais comum é a ocorrência de infeções frequentes, graves ou invulgares. Por exemplo, uma criança que tem mais de oito infeções de ouvido num ano, ou um adulto que sofre de sinusite crónica ou pneumonias recorrentes. Também devemos estar atentos a infeções que não respondem ao tratamento habitual, que normalmente não afetariam uma pessoa com um sistema imunitário saudável. Outros sinais incluem diarreia crónica, má cicatrização de feridas, aftas recorrentes, e no caso de bebés, dificuldade em ganhar peso ou atraso no crescimento. Além disso, algumas pessoas com IDP podem desenvolver doenças autoimunes ou manifestar inflamação crónica em vários órgãos. É importante o conhecimento destes sinais, pois um diagnóstico precoce pode fazer uma diferença significativa no prognóstico e na qualidade de vida dos doentes. (No nosso site temos um cartaz chamado “Será só um infeção” com os sinais a ter em conta: https://www.apdip.pt/wp-content/uploads/2019/04/Sera-so-uma-infecao-APDIP.pdf)
Quais as Imunodeficiências Primárias mais frequentes?
Embora existam centenas de tipos diferentes de IDP, algumas são mais frequentes que outras. A Imunodeficiência Comum Variável (IDCV) é uma das IDP mais comuns em adultos. Esta condição caracteriza-se por níveis baixos de anticorpos e uma maior suscetibilidade a infeções, principalmente respiratórias e gastrointestinais. Outra IDP relativamente comum é a Deficiência Seletiva de IgA, onde o corpo não produz ou produz muito pouca imunoglobulina A. Muitas pessoas com esta condição podem ser assintomáticas, mas outras podem sofrer de infeções recorrentes ou doenças autoimunes. As Agamaglobulinemias, como a Agamaglobulinemia Ligada ao X, são outro grupo importante de IDP. Nestas condições, o corpo não produz, ou produz muito poucos, anticorpos, levando a infeções frequentes. É crucial mencionar a Imunodeficiência Combinada Grave (IDCG). Embora seja mais rara que as anteriores, a IDCG é uma das formas mais graves de IDP e merece destaque devido à sua severidade e à importância do diagnóstico precoce. A IDCG afeta imenso o sistema imunitário, deixando os bebés extremamente vulneráveis a infeções potencialmente fatais. Por fim, é importante notar que, embora estas sejam algumas das IDP mais frequentes, existem muitas outras formas raras que, coletivamente, afetam um número significativo de pessoas.
Como é feito o seu diagnóstico?
Um diagnóstico feito à nascença com um teste no pezinho, neste momento, é possível apenas para a Imunodeficiência Combinada Grave (IDCG). Para outros casos, o diagnóstico pode ser complexo e demorado, envolvendo vários médicos especialistas. É realizado através de uma combinação de história clínica detalhada, exames físicos, análises ao sangue e, em alguns casos, testes genéticos. O ponto essencial é procurar padrões de infeções recorrentes ou outros sintomas sugestivos de IDP.
O que significaria a inclusão da imunodeficiência combinada grave (IDCG) no teste do pezinho?
A inclusão da IDCG no teste do pezinho significaria a possibilidade de diagnosticar esta condição potencialmente fatal nas primeiras semanas de vida, antes do início dos sintomas. Isto permitiria iniciar o tratamento precocemente, muitas vezes antes que ocorram danos irreversíveis ou que o bebé sofra de infeções graves. O tratamento precoce, que pode incluir transplante de células hematopoiéticas, tem uma taxa de sucesso significativamente maior quando realizado nos primeiros meses de vida. Além disso, a deteção precoce pode prevenir complicações graves e potencialmente fatais, reduzindo assim os custos de saúde a longo prazo e, mais importante, salvando vidas e melhorando drasticamente a qualidade de vida destes doentes. Eu acredito que os benefícios do rastreio superam largamente os custos. A APDIP, em conjunto com o GPIP (grupo de médicos especializados em IDP) e a IPOPI (organização internacional de doentes com IDP), temos trabalhado imenso para promover a inclusão da IDCG no programa nacional de rastreio neonatal. Temos atualmente uma petição pública https://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=PT120963 pela inclusão da IDCG no rastreio neonatal.
Para que possamos perceber a importância desta inclusão, em que consiste a imunodeficiência combinada grave (IDCG)?
A imunodeficiência combinada grave (IDCG) é uma das formas mais graves de Imunodeficiência Primária. É caracterizada por uma falha profunda no desenvolvimento e função do sistema imunitário. Os bebés nascidos com IDCG têm pouca ou nenhuma proteção contra infeções. Sem tratamento, esta condição é geralmente fatal no primeiro ano de vida. Os sintomas podem começar a manifestar-se nas primeiras semanas ou meses após o nascimento e podem incluir infeções graves e recorrentes, diarreia crónica, atraso no crescimento e erupções cutâneas.
Por outro lado, há que notar que nem sempre estas doenças são diagnosticadas à nascença. Que outros métodos de diagnóstico podem ser utilizados nestes casos?
Quando as IDP não são diagnosticadas à nascença, existem outros métodos de diagnóstico que podem ser utilizados, como já indiquem antes, podem ser utilizados testes sanguíneos para avaliar a função imunitária, testes genéticos, e em alguns casos, biópsias. Os testes genéticos têm-se tornado cada vez mais importantes no diagnóstico das IDP e a Inteligência Artificial poderá ajudar-nos a detetar com maior rapidez.
Como se tratam as Imunideficiências Primárias?
O tratamento é muito individualizado, dependendo do tipo específico de IDP, da gravidade da condição e das necessidades particulares de cada doente. O tratamento mais comum é terapia de substituição de imunoglobulinas, usado para quem tem défice de anticorpos. Basicamente repõe imunoglobulinas (anticorpos) para ajudar a prevenir infeções. Pode ser administrada por via intravenosa ou subcutânea. O uso de antibióticos profiláticos também é comum em muitos casos de IDP. Estes são utilizados para prevenir infeções bacterianas recorrentes. Em alguns casos, também podem ser utilizados antivirais ou antifúngicos profiláticos. Para formas mais graves de IDP, como a Imunodeficiência Combinada Grave (IDCG), o transplante de células hematopoiéticas pode ser uma opção curativa. Ainda em estudo, existe a terapia génica que visa corrigir o defeito genético relacionado com a doença.
Quais os cuidados a ter, em matéria de prevenção, para impedir o aparecimento de infeções, quando já existe um diagnóstico?
A prevenção de infeções é uma parte importante da gestão das IDP. Quando já existe um diagnóstico, há várias medidas preventivas que os doentes e cuidadores devem adotar. Uma delas, ter uma higiene rigorosa (por exemplo, lavagem frequente das mãos). Evitar o contacto com pessoas doentes. Isso pode significar evitar multidões durante surtos de gripe ou outras doenças infeciosas. Manter uma boa nutrição, uma dieta equilibrada, o exercício regular, quando possível e apropriado para a condição do doente e umma rotina de sono regular com garantia de um número suficiente de horas de sono, pode ajudar a manter um sistema imunitário saudável. Para doentes em tratamento, é crucial seguir rigorosamente o esquema de tratamento prescrito pelo médico.
Quais as complicações associadas mais frequentes?
As complicações associadas mais comuns podem ser doenças autoimunes, doenças gastrointestinais, como má absorção de nutrientes, diarreia crónica e doença inflamatória intestinal, problemas pulmonares crónicos, como bronquiectasias, podem desenvolver-se como resultado de infeções respiratórias recorrentes. É importante notar que nem todos os doentes com IDP passam por estas complicações.
Quais as ideias chave a reter sobre este tema? Que mensagem gostaria de deixar?
Eu diria que é importante reter que é necessário usar tudo o que temos ao nosso alcance para melhorar o diagnóstico, torná-lo o mais precoce possível e dar a melhor qualidade de vida possível a estes doentes. Com o diagnóstico e tratamento adequados, muitas pessoas com IDP podem levar vidas plenas e felizes.