Opinião

Doença Rara e Saúde Mental

Atualizado: 
17/07/2023 - 09:46
Ter uma doença rara é, na grande maioria dos casos, ter um longo caminho de penosas interrogações, sendo que é um campo de um significativo défice de conhecimentos, sejam científicos ou médicos. Por se saber muito pouco sobre a maioria das doenças raras, o diagnóstico feito com precisão ou não acontece, ou é feito muito tardiamente.

A falta de enquadramento objetivo da sintomatologia num diagnóstico leva a que, muitas vezes, o doente tenha tratamentos inapropriados à sua doença, tenha que passar por vários especialistas, tenha que aguentar longas esperas entre consultas, a falta de informação de qualidade sobre a doença, falta de referências de profissionais habilitados e cuidados adequados. Vão-se acumulando frustrações, incompreensões, insucessos, medos, dores e muitas dúvidas quanto ao futuro. Correrei risco de vida? Ficará a minha autonomia comprometida? Terei ao menos tratamentos para os sintomas? A minha esperança de vida será a mesma? Voltarei a integrar-me nos meus grupos escolar/profissional e social?

Se o medo é comum ao ser humano, num processo físico em que adivinham perigos à integridade e à própria vida, a ansiedade surge inevitável. Sem respostas, a sintomatologia ansiosa vai-se agravando, os cenários projetados são o que aparece como mais real. Sem acolhimento clínico sensível a este sofrimento, com uma maior vulnerabilidade a nível psicológico e social a dor vai tirando ânimo aos dias, que se tentam suportar. Que objetivos projetar para o futuro se não se sabe o que significa o sofrimento, na limitação e no tempo? A dor depressiva - tristeza, perda de interesse, redução de energia - pode instalar-se se a espera de respostas for muito longa e a desesperança se instalar.

Ansiedade da espera e futuro

Ainda que seja contracorrente, devemos colocar-nos num modo sem ser de espera e sem apego aos resultados passados e às ideias negativas do futuro. É necessário colocarmo-nos num modo de vida, ainda que seja inevitável pensar-se sobre o que se tem e como será, os dias têm que ser vividos e com um sentido, mesmo que o sentido seja viver hoje o melhor possível. Cuidar do corpo e das emoções, adequar uma atividade física à sua limitação e sofrimento, meditação, relaxamento ajudam a estimular a produção de substâncias que controlam as emoções e pensamentos negativos. Assim como, fazer parte de um grupo com quem possa desenvolver algumas atividades recreativas e manter alguns interesses culturais, como leitura, música, cinema. Somos seres sociais, pensamos e refletimos a vida em conjunto, daí ser necessário mantermos a comunicação, a partilha de conhecimentos diversificados, colaborarmos em algum projeto coloca-nos na roda da vida, num modo de energia. Além de podermos partilhar emoções e afetos, fator fundamental a uma melhor regulação emocional, sendo que aqui a família e amigos são o maior garante de um suporte que, mais do que nunca, se torna necessário.

A dor terrível do olhar dos outros

Consoante a evidência física da doença rara, sabendo que há tantas e de tantas formas que incapacitam e deformam o corpo, o olhar do outro poderá ser mais uma ferida que se abre. Serem fisicamente diferentes, não poderem fazer o que os outros fazem, remete muitas vezes o doente para a condição de solitário, de excluído. Ainda que a doença não seja uma fronteira, é, naturalmente, um lugar de medo, de ignorância e que se não vencida dentro de cada um pode aparecer como descriminação rejeitante. Todos temos medo do sofrimento, da limitação, vermos isso nos outros leva-nos a pensar em nós, o desconforto aparece, a estratégia primária de alívio surge, a fuga. É um desconforto para pensarmos, empatizarmos, mantermo-nos socialmente ligados. Fecharmos os olhos não faz desaparecer o problema, nem nos tira da equação, faz-nos apenas insensíveis, portadores de uma consciência moral e social negativa que tira força a quem dela precisa. É fácil ser como os outros, fazer o que os outros fazem, nem sempre sinónimo de um encontro com uma identidade única que todos temos.

Mas não há como negar que lutar sozinho é mais difícil e, nestes doentes, a força física e emocional já está comprometida. No entanto, aceitar o desafio é poder também fortalecer-se. A opinião dos outros, estigmatizada e preconceituosa, é um problema sim, mas de quem a tem. Num caminho de luta tão árdua como o é o da doença rara, é inevitável e positivo o afastamento de algumas pessoas. Não caminhamos sozinhos, nem somos felizes sem relação ou afeto, pois é assim que nos encontramos, mas podemos avançar com menos gente. Não termos a preocupação de agradar. Quem sou eu além do meu corpo e do meu passado? Há um luto inevitável, já não tenho o mesmo corpo, o futuro que projetei já não é possível e os sonhos que tive já não fazem tanto sentido. Uma parte da história chega ao fim, dói o que se perdeu. Chora-se a ilusão, mas não se poderá perder a esperança, pois é ela que nos permite novos desenhos do futuro. É tempo de redefinir-se, o que é ainda possível sonhar, que desejos quero cumprir? Seremos sempre seres únicos, com um futuro que não sabemos como será, sem ilusões resta-nos a verdade, e ela é sempre o ponto de partida para sermos livres.

Autor: 
Dra. Isabel Gomes - psicóloga e psicoterapeuta na Clínica da Mente
Nota: 
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