A importância de sensibilizar

Atrofia Muscular Espinhal: os desafios no jovem adulto

Atualizado: 
10/02/2023 - 15:14
A Atrofia Muscular Espinhal é uma doença neuromuscular hereditária rara que resulta na diminuição gradual da massa muscular e da força dos músculos – por conta do processo degenerativo de neurónios motores na medula espinhal – o que pode originar a paralisia progressiva e perda de capacidades motoras. Hoje falamos do seu impacto no doente jovem.

Considerada a principal causa de morte de origem genética, estima-se que a Atrofia Muscular Espinhal afete 1 em 10 mil nados vivos. De acordo com o médico neurologista, Miguel Oliveira Santos, a Atrofia Muscular Espinhal (AME) “é uma doença genética causada por deleções e/ou mutações pontuais no gene SMN1. Para que seja transmitida, o erro genético terá que ser herdado de ambos os progenitores, ou poderá surgir espontaneamente de novo no embrião”. “Fraqueza muscular, podendo envolver os músculos da fala, deglutição, respiração e/ou dos membros superiores e inferiores”, constam das principais manifestações físicas, no entanto, o especialista chama a atenção para o facto de que a “gravidade das manifestações é tanto maior quanto mais precoce for a idade de início da doença”.

Segundo o especialista a AME pode ser classificada em quatro tipos, consoante as características e idade do diagnóstico: do tipo 1 (0-6 meses), 2 (7-18 meses), 3 (>18 meses) e 4 (adultos). “O tipo 1 são formas mais graves – bebés hipotónicos (“moles”), com dificuldade na sucção, deglutição, respiração. Tem elevada taxa de mortalidade nos primeiros 2 anos de vida”, adianta revelando que os tipos 3 e 4 são os mais indolentes. “Os doentes do tipo 3 podem perder a marcha algures no decurso da evolução da doença (tornam-se dependentes de cadeira de rodas), enquanto os tipo 4 têm essencialmente alguma dificuldade para andar, mas sem perda de marcha. Têm sobrevida praticamente igual à da população geral dita saudável”, explica.

“As complicações da doença advém sobretudo do atingimento respiratório, sendo o prognóstico mais reservado nas formas tipo 1 e sucessivamente melhor até ao tipo 3 e 4, onde a esperança média de vida não difere da população dita saudável”, acrescenta adiantando que a confirmação da doença deve passar por um estudo genético.

Muito embora, se trate de uma doença rara, explica o médico que quanto mais cedo for referenciada junto de Centros dedicados à consulta de doenças neuromusculares maiores são hipóteses de melhorar a qualidade de vida destes doentes. Deste modo, sublinha: “sintomas como dificuldade a falar, engolir, atraso na aquisição de etapas do desenvolvimento, dificuldade em andar, subir/descer escadas, levantar de uma cadeira ou do solo sem apoio, devem levar a rápida referenciação a consulta de neurologia, nomeadamente neuromusculares, para uma rápida abordagem diagnóstica e terapêutica”.

Atualmente, existem dois tratamentos aprovados em Portugal com indicações específicas mediante as formas clínicas de AME. “Um dos tratamentos tem por base a “correção genética” de um gene semelhante ao SMN1, designado por SMN2. Isto promove o aumento da proteína SMN2 e, desse modo, uma melhoria ou estabilidade da doença. Outro tratamento consiste num vetor viral que irá corrigir a alteração genética precisamente no genoma humano, mas esse só é passível para as formas tipo 1 da doença”, explica o neurologista.

«A palavra de ordem dessa nossa vida é: adaptação constante»

Ana Isabel Gonçalves, presidente da Associação Portuguesa de Neuromusculares, sofre de Atrofia Muscular Espinhal do tipo 2, dando voz aos jovens adultos que convivem com a doença.

“Viver com a doença é viver naturalmente… eu não me lembro de não ter a doença”, começa por contar explicando que foi diagnosticada com AME aos 16 meses de idade. “Tive marcha até perto dos 10 ou 11 anos, mas não era uma marcha muito normal, sempre apoiada com canadianas”, até que aos 12, e após uma cirurgia à coluna para tratar uma escoliose que desenvolveu ao longo dos anos, ficou dependente de uma cadeira de rodas. Um momento muito impactante porque, diz, viu “liberdade” por poder gozar de alguma autonomia. “A minha família não viu dessa forma com certeza”, comenta.

Tratando-se de uma doença progressiva, Ana Isabel Gonçalves, desde cedo aprendeu que é fundamental focar-se no presente. “Saber o que eu consigo fazer hoje, usá-lo a meu favor e não pensar muito naquilo que eu posso ou não vir a deixar de fazer”, afirma.

De qualquer forma, admite que não é fácil conviver com esta doença. “Toda a gestão que preciso fazer, seja a nível familiar, seja de apoio para os banhos, para me deitar, para me levantar, para preparar o almoço ou o jantar, para ajudar nas deslocações, as idas à casa de banho, portanto, tudo aquilo que nós fazemos, de manhã à noite, até nos deitarmos e, às vezes, até durante a noite, exige estar connosco uma terceira pessoa”, revela, o que pode se encarado pelo próprio doente como um fardo a causar no outro. “A nível emocional há fases que não são fáceis…”, lamenta dando como exemplo, o facto de, para poder continuar a estudar, a mãe ter de a acompanhar na deslocação para uma grande cidade. “Eu saio de uma pequena vila e vou para o Porto estudar. A minha mãe veio comigo, na altura, porque não havia serviços para nos apoiar, não havia assistentes sociais, residências que fossem suficientemente acessíveis e, portanto, eu sozinha não fazia nada”, recorda. “E levar a minha mãe e deixar duas irmãs adolescentes mais novas é algo que nós carregamos durante o nosso percurso. São as necessidades que nos são impostas e às quais temos de dar resposta, e é por isso que a adaptação é constante. Não é fácil, mas a palavra de ordem desta nossa vida é: adaptação constante”, sublinha.

Assim, ainda no que diz respeito ainda às dificuldades, Ana Isabel Gonçalves, admite que viver com AME é quase como que viver entre a espada e a parede por não saber o que vai acontecer. “Temos de olhar para nós e aproveitar o dia de hoje com a maior leveza que conseguirmos”, aconselha.

“Eu tenho especial cuidado com a gestão do cansaço”, revela quantos aos cuidados diários. “Porque é esse cansaço em demasia que me pode prejudicar. Tenho a minha logística pensada quase de semana a semana para que o meu cansaço não ultrapasse determinados limites”, revela.

Tratando-se esta de uma doença que exige bastantes cuidados, a presidente da APN, reforça a importância da existência de equipas multidisciplinares nos hospitais para acompanhar estes doentes.

“É preciso termos cuidado com a alimentação, não podemos esquecer que estamos a falar de doenças que afetam a força muscular, portanto existe a perda de força musculas de forma progressiva”, comenta. “Tudo em nós em músculo”, portanto, explica que o doente com AME tem de ter particular cuidado com o sistema respiratório, com o sistema gastrointestinal, “com a forma como a nossa mastigação é feita, se a estamos a conseguir fazer ou não”.

   
Ana Isabel Gonçalves, presidente a APN    

Sensibilizar para a doença é assim vital. “Pretendemos trazer ao conhecimento da sociedade, na primeira pessoa, as diferente necessidades e dificuldades que o jovem adulto que tem a doença sente”, explica referindo-se à campanha de sensibilização para a AME que decorreu ao longo deste mês de agosto.

Ana Isabel Gonçalves alerta ainda que, apesar de existirem alguns apoios a que podem recorrer estes não são pensados especificamente para esta doença e que o processo burocrático não acompanha a urgência na atribuição dos mesmos.

“Existem diversos apoios que não são específicos à AME, mas são tidos em conta para as pessoas com deficiência, no quais nós nos podemos enquadrar. Seja a nível dos produtos de apoio, de apoio para a formação e frequência do trabalho, neste último caso apoio aos empregadores, portanto, há aqui uma série de apoios que existem efetivamente a nível social para que a pessoa se torne mais ativa”, explica. Não obstante, há muito ainda para mudar.

“No caso dos produtos de apoio, na AME no jovem adulto, que é o foco desta campanha, nós não podemos permitir enquanto instituição, não podemos compactuar enquanto sociedade civil com o facto de um doente necessitar de cadeira de rodas elétrica, todo esse direito estar contemplado na legislação, e ter de esperar dois anos para que esse pedido tenha um sinal verde. Toda esta burocracia de submissão de pedidos, avaliação dos produtos, pedidos de orçamento, isso faz tudo parte do processo, mas a segurança social não pode demorar dois anos a dar uma resposta, sobretudo porque a doença é progressiva e quando eu tenho a resposta provavelmente aquilo que eu avaliei já não vai estar adaptado às minhas necessidades.  Para além de que isto traz ansiedade à pessoa, traz uma angústia, à família também. É sempre uma pressão que está a acontecer porque a necessidade existe e se ela existe tem de ser colmatada rapidamente. E esta morosidade na resposta aos produtos de apoio é algo que, neste momento, os doentes com AME estão a viver”, revela.

Por outro lado, sublinha que “é preciso que o empregador tenha consciência de que não deve dar trabalho às pessoas com deficiência, e aqui aos doentes neuromusculares que têm de gerir o seu cansaço diário, para cumprir quotas. Têm de dar valor, mais valia daquilo que vai acrescentar à empresa e tem de respeitar as necessidades daquelas pessoas”.

“Eu não consigo cumprir um dia de trabalho, de oito horas, porque eu vou terminar a semana exausta. Eu tenho de gerir a questão da valorização pessoal no trabalho, mas também tenho de conseguir gerir o meu cansaço que é isso que me vai permitir ter qualidade de vida. Porque quanto mais me cansar mais rapidamente deixarei de fazer algumas coisas por perder as capacidades que tenho ou acelerar um bocadinho a evolução da doença por gestão de cansaço”, dá como exemplo.

“Há outras coisas que devem mudar: o acesso à fisioterapia, nós temos de olhar para os serviços e perceber que não estão de todo adaptados à realidade das doenças neuromusculares, à realidade da AME. Nós precisamos que o fisioterapeuta esteja connosco durante aqueles 50 minutos, a trabalhar constantemente connosco, e não a trabalhar connosco e com mais cinco ou seis pessoas na mesma hora. Isto acontece muito nos serviços convencionados. Depois nós temos também de ter uma fisioterapia regular, não podemos ter períodos de 20 sessões durante um mês e só depois é que temos acesso a nova credencial para outra série de sessões. A nossa fisioterapia deve ser regular, constante, e dedicada em tempo e qualidade”, salienta ainda.

Neste contexto, a existência da Associação Portuguesa de Neuromusculares é fundamental. “Primeiro porque temos um papel de sensibilização da sociedade. Depois porque dentro do mundo institucional, tentamos proporcionar aos nossos associados o que sabemos que é importante que estes tenham no dia-a-dia e que nos outros serviços têm maior dificuldade de acesso, ou às vezes não existem”, explica adiantando que a APN dispõe de uma equipa multidisciplinar constituída por fisioterapeutas, terapia ocupacional, serviço social, psicologia, dispondo ainda de um centro de apoio.

“E temos outro papel fundamental que é o de chegar às entidades decisoras, entidades de topo que tomam decisões essenciais que podem ser fundamentais para a qualidade de vida das pessoas com doenças neuromusculares. Temos o papel de negociação, discussão, intervenção e também de sensibilização para a AME e doenças neuromusculares na sua generalidade”, conclui.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
Image by <a href=