Entrevista

“Ao nascimento, os fenilcetonúricos são clinicamente normais”

Atualizado: 
29/06/2021 - 10:14
Fenilcetonúria ou PKU é uma doença metabólica, hereditária e rara que, quando não tratada, pode provocar uma grave incapacidade intelectual e motora. A impossibilidade de processar fenilalanina, um constituinte das proteínas, obriga os doentes a gerir a sua condição através de uma dieta restrita, evitando o peixe, carne, leite, pão, farinha, ovos e outros derivados. Em entrevista ao Atlas da Saúde, e no âmbito do Dia Internacional da PKU, Esmeralda Martins, Pediatra, Especialista em Doenças Hereditárias do Metabolismo no Centro Materno-Infantil do Norte, alerta para a necessidade de um diagnóstico precoce e pré-sintomático. “As manifestações neurológicas da doença após instaladas são irreversíveis”, revela.

O que é a fenilcetonúria? Como surge a doença? E quais as principais complicações associadas?

A Fenilcetonúria (PKU) é uma doença hereditária do metabolismo da fenilalanina, um aminoácido constituinte das proteínas. É causada pela deficiência da enzima fenilalanina hidroxilase.

O défice da enzima fenilalanina hidroxilase (PAH) ocorre devido a uma mutação no gene que codifica a sua atividade. Trata-se de uma doença hereditária, de transmissão autossómica recessiva. Isto significa que a doença é transmitida geneticamente e ocorre quando tanto o pai como a mãe, mesmo não tendo qualquer sintoma, são portadores de uma mutação no gene da enzima PAH. A probabilidade de um casal de portadores ter um filho com fenilcetonúria, é de 25% em todas as gestações do casal.

O bloqueio causado na degradação da fenilalanina (FEN), pelo défice da PAH leva a um aumento da fenilalanina. Concentrações elevadas de FEN no cérebro são tóxicas influenciando negativamente a mielinização e inibindo a síntese de neurotransmissores, podendo provocar atraso mental e de desenvolvimento.

Quais as principais manifestações clínicas da PKU? E a partir de que idade podem surgir os primeiros sintomas? A que sinais se deve estar atento?

Ao nascimento, os fenilcetonúricos são clinicamente normais. Se não for iniciado um tratamento dietético nos primeiros dias de vida a clínica poderá manifestar-se com atraso psicomotor, epilepsia, microcefalia, eczema (em 20 a 40% dos casos) e diminuição da pigmentação dos olhos, cabelo e pele. Esta clínica instala-se progressivamente de forma crónica a partir dos primeiros 6 meses de vida.

A doença afeta da mesma forma em todos os doentes?

O espectro de gravidade da doença é variável e nem todos os doentes, não tratados, apresentam atraso mental profundo.  A gravidade clínica depende dos níveis de fenilalanina, que por sua vez refletem o grau de deficiência da enzima fenilalanina hidroxilase. A gravidade das manifestações é maior em situações de atividade nula ou muito reduzida da enzima.

Como é feito o seu diagnóstico? 

O diagnóstico em Portugal é realizado numa fase pré-sintomática, desde 1979, a partir de sangue colhido em papel de filtro “teste do pezinho”. Nas maternidades, hospitais e centros de saúde, existem cartões apropriados para a colheita de sangue do bebé, que deverá ser feita após o 3º dia de vida e preferencialmente antes do 6º dia de vida. A análise é suportada pelo Serviço Nacional de Saúde, sendo gratuita para os pais. A elevação da fenilalanina associada a uma relação diminuída entre a fenilalanina e o aminoácido tirosina levam ao diagnóstico. Nesta fase é importante excluir outras situações muito mais raras de elevação da fenilalanina nomeadamente os defeitos no metabolismo das biopterinas.

Nas situações de exceção, em que não é feito o rastreio neonatal, o diagnóstico é baseado na suspeita clínica após aparecimento de sintomas e confirmado pelos marcadores bioquímicos da PKU e estudo molecular. 

Que implicações pode ter um diagnóstico tardio no seu tratamento ou na evolução da doença?

Só um diagnóstico precoce e pré sintomático vai possibilitar um bom prognóstico porque as manifestações neurológicas da doença após instaladas são irreversíveis.

Como se trata a fenilcetonúria? Quais os cuidados a ter?

A base do tratamento, que permite à criança um desenvolvimento normal, baseia-se no cumprimento de uma dieta com restrição (pobre) em fenilalanina. Uma dieta com restrição de fenilalanina consiste na redução de proteínas naturais, substituindo-os por uma fórmula especial praticamente isenta/sem FEN mas que contém os restantes aminoácidos. A restrição nutricional de fenilalanina (e consequentemente de proteínas naturais) deve ser adequada à tolerância de cada criança, de modo a manter uma concentração segura de aminoácidos no sangue e nos tecidos do organismo. Adicionalmente a dieta é complementada com substitutos energéticos e alimentos especiais hipoproteicos.

O tratamento dietético é para manter toda a vida? Quais os cuidados alimentares que estes doentes devem ter? Por exemplo, quais os alimentos proibidos?

O tratamento dietético terá que durar toda a vida podendo, no entanto, ser possível alguma liberalização da dieta após a adolescência, não ultrapassando valores de FEN sanguínea considerados aceitáveis. Nas formas mais graves estão proibidos alimentos com elevado teor proteico nomeadamente o leite e derivados, carne, peixe, ovos e leguminosas entre outros.

Em matéria de terapêutica medicamentosa, que medicamentos existem para o tratamento desta doença?

Nos últimos anos estão a surgir tratamentos alternativos ou complementares da dieta.

A sapropterina, primeira terapêutica não dietética da fenilcetonúria é a forma sintética da BH4 que é o cofator da enzima PAH. A terapêutica com este medicamento, poderá aumentar a tolerância dos doentes à fenilalanina e, em alguns casos, eliminar mesmo as restrições alimentares. Deve ser efetuada uma prova terapêutica, sendo considerada uma resposta favorável a descida da fenilalanina de 30% em relação aos valores prévios à toma.

A terapêutica enzimática de substituição, com fenilalanina amónia liase, está já ser utilizada a partir dos 16 anos de idade, aguardando-se a sua aprovação em Portugal. 

A terapia génica poderá vir a ser, também, uma opção futura de tratamento.

Qual o seu prognóstico? Quais os principais desafios associados quer ao tratamento quer à convivência com esta doença?

O prognóstico é totalmente alterado e favorável com uma terapêutica adequada. Esta vai permitir ao PKU um desenvolvimento pleno das suas capacidades físicas e mentais. Sendo uma doença crónica e para toda a vida os principais desafios são a aceitação da doença e do tratamento dietético por parte dos pais, familiares e posteriormente do próprio doente com a manutenção da dieta ao longo do seu ciclo de vida. Sendo a adolescência um período mais conturbado, com o receio da não aceitação pelos seus pares, e a gravidez um período que exige um cuidado acrescido por parte das mulheres com PKU, os profissionais de saúde que fazem o seu seguimento têm que ter uma atenção especial nestas fases.

Em todos os doentes com tratamento dietético, é importante o doseamento de minerais, vitaminas e ácidos gordos essenciais que podem estar alterados pela alimentação hipoproteica a longo prazo. A vigilância de síndrome metabólica e alterações da densidade óssea fazem também parte da monitorização.

Quais as consequências quando não tratada?

O não tratamento desta doença leva ao aparecimento das manifestações clínicas já referidas com quadros de doença neurológica irreversível, por vezes extremamente graves, com consequências nefastas para o individuo, família e sociedade.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
Dra. Esmeralda Martins