Quando o amor é a única cura do doente com Esclerose Lateral Amiotrófica
Apesar de não existirem dados oficiais, estima-se que, em Portugal, existam entre 400 e 500 doentes com Esclerose Lateral Amiotrófica.
De acordo com a Associação Portuguesa de Esclerose Lateral Amiotrófica (APELA), o que acontece nesta patologia é que “os neurónios motores (cabos eléctricos) que conduzem a informação do cérebro aos músculos do nosso corpo, passando pela medula espinhal, morrem precocemente”.
A morte prematura destes neurónios leva a que estes músculos - que nos permitem realizar os mais variados movimentos como andar, falar, mastigar ou engolir - enfraqueçam e acabem por perder a sua função.
Falta de força e atrofia muscular, espasmos involuntários nos músculos, cãibras ou fadiga são principais sintomas.
No entanto, esta doença pode ser classificada, de acordo com as suas formas de apresentação inicial como:
- Medular (também a forma mais frequente), quando os primeiros sintomas envolvem os músculos dos braços ou pernas, apresentando o doente dificuldade na marcha ou dificuldade em abotoar uma camisa, por exemplo;
- Bulbar – quando a doença compromete a fala, existindo dificuldade em articular as palavrar ou dificuldade em engolir ou mastigar;
- Axial – quando a fraqueza muscular envolve os músculos do pescoço ou tronco, levando a alguns desequílibrios;
- Difusa – quando o doente apresenta várias queixas por todo o corpo, sendo difícil identificar os primeiros sintomas.
De acordo com os especialistas, ainda que não lhe esteja associada uma causa, pensa-se que cerca de 10 por cento dos casos tenha uma origem genética, sendo que qualquer individuo, em qualquer idade, pode ser atingido pela doença.
“No entanto, a idade média de ínicio dos primeiros sintomas é de cerca de 60 anos”, pode ler-se na página da APELA.
O caso de José António veio contrariar esta tendência, tendo sido diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica aos 44 anos.
“Sempre foi uma pessoa saudável, que gostava muito de caça, motas e jipes”, começa por contar Teresa Moreira, mulher de António.
Até que, “no início de 2006, num dos seus passeios com o seu cão de caça, depois de jantar, começou a sentir que o músculo da perna esquerda prendia. “Como estávamos no Inverno, pensou que fosse do frio e do cansaço, e não lhe deu muita importância”, explica.
“Em Junho foi a um ortopedista. A perna já não levantava, arrastava só”, conta, monstrando que a situação piorou de forma abrupta.
“Fez vários exames, inclusive uma electromiografia e, aparentemente, estava tudo bem. No entanto, como o ortopedista não encontrou nada que pudesse justificar os sintomas recomendou que fosse a um neurologista”, recorda a mulher.
“Marcámos imediatamente consulta com um neurologista amigo que mal olhou para o Zé em tronco nu, viu o que se estava a passar”, diz. De acordo com Teresa, José já tremia muito. “Tinha muitas fasciculações no peito, ombros e costas. O meu marido achava que aqueles tremores se deviam a ansiedade”, adianta.
Com a repetição de nova electromiografia chega o diagnóstico. “Dois ou três dias depois de feito o exame, o médico ligou-nos a dizer que tinha de conversar pessoalmente connosco. Nunca nos passou pela cabeça que fosse algo grave”, relembra Teresa.
José sofria de uma doença do neurónio motor, degenerativa e sem cura. “O neurologista, na altura, não explicou grande coisa. Apenas que não iria melhorar e que provavelmente iria ficar numa cadeira de rodas”, revela.
“O mundo desabou! Lembro-me que viemos para casa calados e nos dias seguintes não conseguimos falar do assunto... Claro que ambos recorremos à internet para ver o que era a doença. Sem cura e com um diagnóstico estimado de dois a cinco anos... Lembro-me que chorei sem parar, sozinha no meu escritório, sem saber o que fazer”, confessa.
O marido, esse, não quis falar do que lhe estava a acontecer. “Ele era muito reservado. Não quis falar mas sentiu uma grande revolta”, recorda Teresa.
E foi com uma “sentença de morte nas mãos” que procuraram outro médico que lhes mostrou que “cada caso é um caso e que as estatísticas são apenas estatísticas”, não podendo prever o que iria acontecer a partir daquele momento.
“Mas já tínhamos lido coisas que não queríamos ler. Tínhamos duas filhas ainda pequenas. O Zé perguntava «e agora o que é que eu faço? Fico à espera de morrer?»”, conta.
Passado o choque inicial, não havia como cruzar os braços. “Eu decidi que tinha de tomar uma atitude. Conversei com o meu marido e disse-lhe que ia estar com ele. Combinámos que a vida ir continuar dentro da normalidade possível”, recorda.
Teresa deixou o emprego e passou a dedicar-se exclusivamente ao marido e às filhas. “Nada era mais importante para mim que a família e eu tinha, na altura, 39 anos. Pensava que cinco anos não iam prejudicar em nada a minha vida e foi então que decidi pô-la em stand by e viver com, e para o Zé”, explica.
Foram de férias e quando regressaram decidiram viver um problema de cada vez, não antecipando o que aconteceria a seguir.
“Conversei com as minhas filhas. Expliquei que o pai estava doente, não ia melhorar e que nós tínhamos uma missão a cumprir: dar muito amor, muito carinho e muita qualidade de vida ao pai. Essa era a cura possível para a doença dele”, conta.
O caso de José António acabou por escapar a todas as previsões, contando já com 10 anos de sobrevida após diagnóstico.
“No caso dele a doença foi muito rápida, também. Evoluiu à velocidade cruzeiro, como dizia o neurologista”, afirma Teresa. “Os dois anos que se seguiram ao diagnóstico foram muito díficeis. Não tínhamos tempo de nos habituar a uma nova situação porque vinha outra a caminho”, justifica.
Ao fim de um ano, José António estava preso a uma cadeira de rodas, “os braços quase não mexiam e a fala começava a estar afetada”.
“A revolta era muita, tinha momentos de desespero, queria morrer, recusava viver aprisionado e insistia em fazer a vida normal como sempre”, adianta.
Teresa, enquanto cuidadora também sofreu. Mas com fé e otimismo nunca desistiu de lutar pelo bem-estar do marido.
“Para mim como cuidadora foi um horror, eram noites sem dormir e dias muito cansativos. Levá-lo ao escritório, dar-lhe refeiçoes – que eram um sofrimento porque a deglutição já estava comprometida, mas ele queria estar à mesa com a família e comer normalmente – , dar-lhe banho, vesti-lo e tudo o mais que fosse preciso...”, justifica.
No entanto, apesar de toda a dor, foi o seu apoio incondicional, a companhia das filhas e da família que ajudaram José a aceitar a doença.
“Estes doentes têm muitos medos. Na fase inicial da doença caiem muito, desequilibram-se facilmente, perdem a força e o cuidador tem aqui um papel extremamente importante”, revela.
Muito embora, Teresa garante que não é fácil conviver com a revolta do doente. “Temos de ter uma capacidade muito especial para ultrapassarmos esta fase. O doente precisa de sentir que tem alguém que os acompanha, que está ao lado dele. Acho que, no fundo, o mais importante para alcançar esta tranquilidade é não dramatizar demasiado a situação e viver um dia de cada vez”, afirma.
“Temos de estar calmos e mostrar que conseguimos suportar tudo por nós e por eles”, garante.
Em pouco tempo, José passou a comunicar através do computador e mais tarde com o piscar dos olhos.
“A médica que o acompanha costuma dizer que o José já passou o prazo de validade. Passaram 10 anos após diagnóstico. Neste momento a comunicação já é dificil...” revela.
“Todas as doenças são más, mas esta é má demais porque o doente fica prisioneiro num corpo que não consegue reagir a nada. Essa é a luta. O doente percebe tudo o que lhe está a acontecer, mas apenas existe num corpo que não mexe”, acrescenta Teresa.
A cuidadora lamenta ainda que a sociedade não esteja preparada para lidar com esta doença. “Nem sempre as pessoas conseguem entender muito bem a doença. Têm pena. E como não conseguem comunicar com o doente, pura e simplesmente afastam-se”, diz. “Durante este tempo, muitos amigos foram-se afastando com o argumento de que era díficil ver o Zé nesta situação”, exemplifica.
Desde 2008, José António é alimentado por sonda e está traqueostomizado, ligado a um ventilador 24 horas por dia.
“Neste momento, a situação está a ser mais complicada. Há mais cansaço, um maior desgaste de tantos anos a conviver com a doença”, afirma.
No entanto, garante que o amor continua a ser o motor desta família, que não desiste, ainda que o sofrimento se sobreponha aos momentos de alegria.
“Tem tudo a ver com a forma como encaramos os problemas. Resiliência e aceitação são as palavras-chave neste percurso”, justica a cuidadora.
“Sou católica e digo muitas vezes que sem Maria, nada do que faço seria possível”, conclui Teresa.