Perda gestacional: “estes pais existem” e pode haver um dia dedicado a eles
“Quando um filho morre — com cinco, seis ou sete anos —, a morte é respeitada por toda a gente e tem um impacto emocional grande na sociedade. Contudo, quando se fala na perda gestacional existe ainda muita dificuldade das pessoas perceberem que também é um filho que se perde.”
Em 2007, Sandra Cunha era vice-presidente e psicóloga da Associação Projeto Artemis (A-PA), que ajudou a fundar em 2005 e dá apoio a pais e mães que passaram por uma perda gestacional. A questão não lhe era pessoal, até ao dia em que se tornou também ela uma das mães que a associação passou a acompanhar. Em 2007, perdeu o filho às dez semanas de gestação.
“Em Portugal, ao contrário daquilo que a sociedade imagina, perdem-se imensos bebés durante a gravidez”, diz ao jornal Público a agora presidente da Artemis. “É um assunto de que não se fala” e a informação e o apoio dado os pais é escassa. O luto é feito em silêncio, normalmente dentro de casa, porque “estas pessoas sentem que não são compreendidas”, explica.
Sandra destaca que o seu caso foi diferente, porque “já estava no lugar certo”. “Na altura, já estava inserida na associação e o apoio veio de lá sem que tivesse que o procurar, como os outros pais são obrigados a fazer.”
Com o objetivo de desconstruir “o tabu que cresce com a ignorância e o desconhecimento” e permitir "que o apoio não seja apenas dado por pessoas que passaram por uma experiência semelhante", a associação lançou uma petição pública para a criação do Dia Nacional para a Sensibilização da Perda Gestacional, a 15 de Outubro, e reuniu as 4000 assinaturas necessárias para que esta seja discutida na Assembleia da República. A decisão está agora nas mãos da Comissão Parlamentar de Saúde, que nesta quarta-feira vota a petição.
“Como associação, achamos que é possível ajudar, não a minimizar a dor, mas a sensibilizar a sociedade para a existência destes pais.” Todos os anos, neste dia, a associação espera poder fazer acções de sensibilização “que tenham impacto diferente nas pessoas”. Sandra Cunha diz que os casos mais “desvalorizados” são as perdas no primeiro semestre de gestação, “em que a sociedade e mesmo os profissionais de saúde desrespeitam os pais que perderam os seus filhos”.
“Discriminação no SNS”
No seguimento de uma reunião com os deputados Marisabel Moutela (PS) e Carlos Matias (BE), em Maio, a A-PA elaborou um memorando de recomendações, onde a discriminação de que estes pais se dizem alvo por parte do Serviço Nacional de Saúde (SNS) é uma questão central.
“A formação dos profissionais de saúde, principalmente nas maternidades, é uma formação para a vida e também eles têm dificuldade em lidar com estes insucessos”, destaca Sandra Cunha.
A psicóloga soma a isto a estrutura do próprio SNS, que diz ter “imensas lacunas”: em vários hospitais, a associação notou que estas mães são internadas juntamente com mães em parto normal, onde “são confrontadas com bebés recém-nascidos durante todo o seu internamento”, pode ler-se no memorando.
Também a forma como a notícia é dada aos pais “é muitas vezes feita de forma desrespeitosa, porque não há preocupação com as palavras nem com o contexto”, explica Sandra Cunha. A psicóloga descreve casos em que o técnico informa os pais durante “uma ecografia, quando vê que o bebé está morto, sem tentarem um ambiente mais propício, com uma equipa disponível para que estes pais tenham apoio”. Apoio esse que chega, “quando chega”, cinco ou seis meses depois da perda. “Não se espera ouvir numa ecografia, quando se pensa que estava tudo bem, que o nosso filho está morto dentro de nós”, descreve Sandra.
À falta de psicólogos nos hospitais junta-se a “questão de mentalidade”, que levou as unidades de saúde contactadas pela associação a recusarem o serviço de psicologia que disponibilizaram de forma voluntária, conta Sandra Cunha: “Dizem-nos que estes serviços não são necessários.”
Quantas mulheres terão passado pelo mesmo, em Portugal, é difícil de saber. A associação denuncia que as estatísticas sobre as perdas gestacionais após as 22 semanas de gestação “são dúbias”. As últimas referem-se a 2015 e indicam que houve 489 perdas gestacionais, um número que Sandra Cunha considera “ser muito afastado da realidade”, uma vez que “o próprio relatório da Direcção-Geral da Saúde indica que nem todos os hospitais responderam quando lhes foram solicitados esses números”, lê-se no memorando.
Também os dados sobre as perdas até às 22 semanas — clinicamente consideradas como abortos espontâneos — estão inseridos no Relatório Anual das Complicações das Interrupções da Gravidez. Facto que Sandra considera ser fruto de uma perceção errada sobre questão, em virtude de uma “mentalidade que minimiza as perdas gestacionais”.
O mesmo acontece relativamente à dispensa do certificado médico em caso de morte fetal, norma esta que está inserida na legislação sobre a interrupção voluntária da gravidez. “Mais uma vez, a perda gestacional está incluída no local errado”, salienta.