O psicólogo e a Saúde Mental dos portugueses

"Muitos centros de saúde e muitos serviços hospitalares continuam sem psicólogo"

Atualizado: 
05/12/2016 - 15:32
Falta de recursos humanos e financeiros, desigualdade na distribuição geográfica ou más condições de contratação e de trabalho dos técnicos especializados são algumas das falhas que o psicólogo Victor Moita aponta ao Serviço Nacional de Saúde, no que diz respeito à Saúde Mental. Com mais de 40 anos de experiência, o especialista admite, em entrevista ao Atlas da Saúde, que as políticas de baixo investimento na prevenção da doença mental “revelam pouca inteligência e visão do futuro”.

Tendo em conta os dados recentes, que demonstram que as perturbações mentais têm vindo aumentar, como vê a Saúde Mental dos portugueses?

A saúde mental dos portugueses depende seguramente de uma maior quantidade e de uma melhor e mais diversificada distribuição dos técnicos de saúde, incluindo os psicólogos pelas diferentes zonas do país e pelos diferentes serviços de saúde e não só. Mas depende sobretudo da qualidade de vida decorrente do investimento que se faz nas pessoas: no acesso e na qualidade da educação, dos cuidados de saúde, particularmente durante a infância e a juventude, bem como no combate eficaz à pobreza.

No mais recente relatório da OCDE (reportado a 2013), entre os 30 países com rendimentos mais desiguais, Portugal é o país mais desigual da Europa e o 7º da OCDE.

Quais as principais causas? E quais as consequências desta situação?

As principais causas desta situação são, obviamente, as opções dos decisores políticos e as consequentes políticas associadas a modelos de desenvolvimento económico e social que estão subjugados ao poder financeiro e à obtenção do lucro, a qualquer preço, sem que a riqueza produzida seja mais justa e socialmente distribuída.

As consequências são a degradação progressiva da qualidade de vida das pessoas e do tecido social. Nestas circunstâncias, não é de admirar que a saúde -  incluindo a saúde mental - das populações se degrade e que os relativamente poucos recursos financeiros que lhe são afectados sejam cada vez mais insuficientes.

No relatório da OCDE, atrás citado, 40% da população em Portugal integrava (2013) o grupo dos mais pobres, isto é, dos que tinham acesso a 19,5% da riqueza produzida. Segundo o mesmo relatório, esta situação põe em risco a coesão social e o crescimento do país.

Porque é que a saúde mental continua a ser desvalorizada ou deixada para segundo plano, apesar dos avanços a que se vem a assistir, na área dos cuidados, nos últimos anos?

Por medo ancestral, por ignorância, por desconhecimento, e por más opções dos decisores políticos.

A doença mental é tradicionalmente uma área que – tal como a morte - gera desconforto generalizado nas pessoas. A resposta mais comum, quando nos confrontamos com a situação, é, para além do medo, resultante da ignorância e do desconhecimento, também a vergonha. Esta atitude só se pode combater com a educação, com a luta contra os estereótipos que lhes estão associados, por acções de esclarecimento e acções cívicas de combate à descriminação das pessoas em sofrimento ou com doença mental.

As políticas de baixo investimento na prevenção através da educação e de acções de formação e esclarecimento revelam a pouca inteligência e visão do futuro que caracteriza os nossos decisores políticos.

Considera que o investimento em saúde mental que tem sido feito, aos pouco até aqui, e que resulta de um conjunto de medidas que preconizam uma maior ligação entre os cuidados diferenciados de saúde mental e os cuidados gerais de saúde, tem sido suficiente?

A este respeito limito-me a citar o Plano Nacional de Saúde Mental 2007—2016:  

O nível modesto de recursos disponíveis para a saúde mental em Portugal é certamente um dos factores que tem dificultado o desenvolvimento e a melhoria dos serviços neste sector. Ao contrário do que sucede noutros países, os grupos de utentes e familiares nunca tiveram uma voz activa na sociedade portuguesa. A perspectiva de saúde pública e a cultura de avaliação de serviços sempre foram frágeis na área da saúde mental em Portugal. Resultado: os recursos atribuídos à saúde mental são indiscutivelmente baixos”.

Qual a sua opinião relativamente às unidades de cuidados continuados de saúde mental? Qual a sua importância?

A maior eficácia das práticas de apoio à saúde mental na comunidade e próxima das residências das pessoas que dele necessitam é reconhecida na Europa e no mundo ocidental desde pelo menos a década de setenta do século passado. Exemplo disso foram os movimentos de desinstitucionalização (hospitalar) das pessoas com diagnóstico de doença mental ou em situação de sofrimento mental crónico, e o desenvolvimento de projectos de saúde mental comunitários. Esses movimentos, embora com altos e baixos na sua concretização, foram-se consolidando até aos dias de hoje.

A Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI) celebrou recentemente (junho 2016) dez anos de existência. Segundo noticias divulgadas nos meios de comunicação social pelo seu coordenador, as unidades de saúde mental só agora terão começado a abrir (1 de julho 2016). Não se percebe porque é que só agora chegam, dez anos depois.

As carências nesta área são enormes e fazem-se sentir particularmente nas zonas urbanas de Lisboa e Porto.

A necessidade de formar os “cuidadores” – familiares ou prestadores de serviços – e de garantir a qualidade do exercício destas funções é de particular importância. A esta necessidade não são alheios os psicólogos e a urgência de os fazer participar neste processo.

Também segundo o seu coordenador, Portugal dedica 0,6% do Produto Interno Bruto a este tipo de cuidados, em termos gerais e não especificamente em relação à saúde mental. A média europeia da verba afetada é de 2 a 3%. Por aqui se vê o escasso investimento que fica reservado para a saúde mental.

Quais as principais falhas do sistema relativamente à Saúde Mental?

É a falta de recursos financeiros, a sua fraca implantação no terreno e desigual distribuição geográfica, bem como a falta de colocação e as baixas remunerações e más condições de contratação e de trabalho dos agentes e técnicos especializados (incluindo psicólogos) que são afetados ao sistema.

Considera que os restantes profissionais de saúde estão despertos para questões relativas à saúde mental?

Os restantes profissionais de saúde genericamente estarão despertos para as questões relativas à saúde mental. Mas nunca será de mais promover o conhecimento actualizado das questões que envolvem os cuidados e as boas práticas nesta matéria.

Qual a importância do psicólogo na sociedade?

A formação em Psicologia é de largo espectro nos seus conhecimentos científicos e na sua aplicabilidade. O mesmo acontece com a profissão de psicólogo cuja actividade é aplicável em largos e diversificados sectores de actividade, desde os tradicionais – clinica e saúde, escola e educação, administração da justiça, organizações empresariais e outras, trabalho e recursos humanos. Mas também em áreas mais específicas de intervenção como na prevenção e gestão de incidentes de violência no apoio às forças policiais e de segurança, em situações de risco e catástrofe, em contextos de liderança, nos media e em muitos outros.

Qual o estado atual da profissão?

É uma pergunta aparentemente simples, mas de resposta muito complexa.

Não temos estudos actualizados que possam suportar com segurança a nossa reflexão sobre este tema. Podemos, no entanto, utilizar como analisador, a situação dos psicólogos na saúde e na educação (escolas) e a forma como os decisores políticos consideram a importância da psicologia e dos psicólogos na sociedade. Desde logo centrando-nos no tipo de reconhecimento da sua relevância.

Já em março de 2008, numa carta de interpelação ao Governo, o Grupo Parlamentar “Os Verdes” (alertado pelo Sindicato Nacional dos Psicólogos) chamava a atenção para a grave carência de psicólogos no Serviço Nacional de Saúde. No Serviço Nacional de Saúde existiam 553 psicólogos, o que equivalia a cerca de 1 psicólogo / 18 mil utentes. O que é certo é que, hoje em dia, a situação não está muito diferente, com os cerca de 600 psicólogos que trabalham no SNS. A gravidade desta situação é evidente se tivermos em conta que na Comunidade Europeia se preconiza o racio – ainda assim muito aquém do que seria desejável - de 1 psicólogo /5000 habitantes. Muitos centros de saúde e muitos serviços hospitalares continuam sem psicólogos.

No que diz respeito à intervenção dos psicólogos na educação e nas escolas, limito-me a citar uma notícia (Jornal de Notícias 2016 09 28) recentemente divulgada e comentada pelo Sindicato Nacional dos Psicólogos:

“Segundo dados do recente relatório do Conselho Nacional de Educação, o número de psicólogos nas escolas desceu brutalmente nos últimos anos. De um número de 1584 em 2010-2011, passaram a 489 em 2014 -2015.” (...) “Na realidade das escolas falamos de um psicólogo para cada 1700 alunos”, quando o rácio adequado seria de 1 psicólogo / 500 alunos.

Um segundo analisador interessante para nos ajudar a pensar sobre o o estado atual da profissão tem a ver com o ensino da psicologia em Portugal.

Sabemos que existem, no nosso país, cerca de 30 cursos superiores de psicologia, com configurações programáticas diversas. Não me vou debruçar sobre a qualidade dos seus currícula, e assuntos relacionados. O facto de os cursos da rede nacional de ensino superior terem que ser acreditados pelas entidades competentes do Ministério da Educação, dispensa-me essa abordagem, que também, pela sua complexidade, não se enquadraria na necessária limitação desta resposta.

Também não existem estudos que nos permitam ter uma visão concreta da relação existente entre a quantidade (cerca de 1500 diplomados por ano) e diversidade de formação dos psicólogos que saem diplomados das nossas universidades e institutos, e as necessidades do país. Mas sempre direi que - ao contrário do que muitas vezes vejo referido e ouço dizer a entidades interessadas nestes assuntos - que estamos longe de atingir o número de psicólogos de que o país seguramente carece. Não só para o desempenho das funções que tradicionalmente lhes são atribuídas, mas também pelo largo espectro de atividades e aplicações sociais e cívicas que a formação superior em psicologia permite. Nem todos os diplomados em psicologia terão necessariamente que exercer a profissão de psicólogo. Isso não será necessariamente negativo, nem para os próprios, nem para a sociedade.

Um terceiro, e por agora último analisador para ajudar a nossa reflexão sobre este tema será o reconhecimento e a confiança que a sociedade tem na psicologia e nos psicólogos.

A este respeito também não temos estudos actualizados que nos indiquem com precisão qual a representação social que os portugueses têm da psicologia e, sobretudo, do psicólogo. Mas a minha intuição, forjada em mais de 40 anos de atividade profissional como psicólogo exercendo em diferentes contextos, nomeadamente nas áreas da saúde e da justiça, e como professor universitário, é a de que o psicólogo - e as suas funções – é genericamente reconhecido e respeitado. Como em todas as profissões, uns serão mais do que outros, pelas suas qualidades pessoais e competências profissionais diversas. Mas sempre sofrerão os efeitos dos estigmas relacionados com os estereótipos sociais e de exclusão que muito frequentemente o associam à doença e ao sofrimento mental.

 

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
Victor Moita