Lúpus infantil: “no primeiro ano, foram raras as vezes que saí de casa no verão”
O Lúpus Eritematoso Sistémico é uma doença rara na infância, sobretudo na primeira década de vida. No entanto, há casos de início muito precoce, estimando-se que atinja 1 criança em cada 200 mil ainda antes dos 16 anos.
“As manifestações clínicas são semelhantes às do adulto, embora na infância seja mais frequente uma apresentação aguda, por vezes com febre, alterações do estado geral e envolvimento multiorgânico”, começa por explicar Maria José Santos, reumatologista do Hospital Garcia de Horta, referindo que as manifestações cutâneas e articulares estão entre as que mais atingem as crianças. “No entanto, o envolvimento renal, hematológico e neurológico é mais comum no lúpus juvenil, comparativamente à doença iniciada na idade adulta”, acrescenta.
Tratando-se, esta, de uma doença heterogénea e que pode simular outras patologias, os sintomas podem variar muito de caso para caso, dificultando o diagnóstico. Foi o que aconteceu a Ana Carolina que, só após várias análises e uma biopsia, ficou a saber que sofria da doença. Tinha nove anos.
“Inicialmente foi diagnosticada uma simples alergia”, recorda acrescentando que a retenção de líquidos, o cansaço extremo e a presença de várias feridas nas mãos e nariz eram as principais queixas.
De acordo com a especialista, Maria José Santos, o seu diagnóstico tem por base as manifestações clínicas da doença e algumas alterações laboratoriais específicas, como a “diminuição de glóbulos brancos, particularmente dos linfócitos, diminuição das plaquetas, anemia hemolítica, diminuição das frações C3 e C4 do complemento e alterações do sedimento urinário”.
Por outro lado, “é importante documentar a presença de auto-anticorpos, nomeadamente de anticorpos antinucleares (ANA), anti-DNA ou anti-Sm”.
Quanto ao tratamento, e uma vez que esta é uma doença crónica que evolui por surtos, não há um tratamento único e igual para todos os doentes. “Há que ter em conta as manifestações clínicas e a sua gravidade e adotar as medidas terapêuticas mais apropriadas a cada momento”, afirma a reumatologista.
“Existem contudo alguns princípios transversais a todos os doentes, tais como evitar a exposição solar, adotar estilos de vida saudáveis e manter uma vigilância regular de modo a detetar e tratar atempadamente qualquer exacerbação da doença”, refere acrescentando que os medicamentos anti-palúdicos "são úteis e seguros na generalidade dos casos”, embora, por vezes, seja necessário recorrer a corticosteróides, imunossupressores e/ou a medicamentos biológicos para tratamento das formas mais graves da doença.
Ana Carolina chegou a fazer ciclos de quimioterapia para tentar controlar a doença. “Depois fiz tratamento via oral, durante dois anos, e também medicação para a tensão, estômago, dores articulares, diuréticos… No total chegaram a ser 20 comprimidos diariamente”, comenta a jovem, hoje com 19 anos.
“O primeiro ano foi o mais crítico”
Para Ana Carolina o primeiro ano após o diagnóstico foi o mais difícil, passando por várias alterações e restrições no seu dia a dia.
“No início, muitas mudanças existiram. Depois de estabilizar, o primeiro ano foi o mais crítico, onde todo o cuidado era pouco. As restrições alimentares e as restrições aos esforços foram as maiores alterações que me vi obrigada a fazer”, recorda, admitindo que as dores articulares foram o que mais a condicionou na época. Por outro lado, o cuidado com a exposição solar levou-a a estar em casa durante o verão, ao contrário do que seria de esperar de uma criança da sua idade. “No primeiro ano, foram raras as vezes que saí de casa…”, afirma.
“Depois aos poucos, e com muitas precauções”- como o uso de um protetor solar e chapéu -, passou a enfrentar o sol só e apenas depois das horas de maior calor.
Ainda assim, mesmo não desfrutando em pleno da sua infância, Ana afiança que apesar das dificuldades nunca se deixou abater. “Graças a Deus, a minha família sempre me fez pensar que eu era forte e que eu conseguia passar por cima”, justifica.
“Além de todos os cuidados mencionados anteriormente, há que ter particular atenção ao desenvolvimento da criança, quer do ponto de vista físico, psíquico, mas também à sua integração na família e na sociedade”, explica Maria José Santos.
Como qualquer doença crónica, o Lúpus exerce um enorme impacto na vida do doente, sobretudo no doente jovem. “Acresce que alguns medicamentos para tratar o Lúpus podem interferir com o crescimento, associar-se a aumento de peso e alterações da imagem corporal, com graves problemas de autoestima. Há que educar a criança/o jovem sobre o que pode esperar desta doença e aprender a lidar com ela. O envolvimento da família e da escola são pilares fundamentais neste processo”, reforça a reumatologista.
“Importa ter força para encarar tudo isto e pensar que é apenas um mau bocado que, daqui a uns dias, já tudo estará a voltar ao normal. Todos somos uns guerreiros por todos os dias que vivemos. Viver com Lúpus não é fácil”, afirma a jovem que encontrou na Associação de Doentes com Lúpus (ADL) um porto de abrigo.
As causas da doença permanecem desconhecidas. No entanto, a patologia parece estar relacionada com condições que dão origem a uma certa predisposição para a doença. Estas causas ou fatores podem ser de ordem genética, hormonal ou ambiental.