Infeções por bactérias multirresistentes matam 3 portugueses por dia
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, mais de metade dos antibióticos são prescritos de forma inadequada. Quer isto dizer que não só a população não está sensibilizada para a questão da resistência aos antibióticos, como os médicos também «abusam» quanto à sua recomendação… Ora, isto não é um contrassenso? Como se justifica esta posição?
Até meados do século passado, as doenças infeciosas eram a primeira causa de morte a nível global. A utilização generalizada dos antibióticos, iniciada durante a segunda guerra mundial, permitiu tratar infeções anteriormente mortais, como a sépsis nos soldados feridos em combate, a pneumonia ou a tuberculose. Sendo eficazes, além de bem tolerados, estes fármacos passaram a ser vistos como uma “bala mágica” contra a doença. Esta confiança desmedida instalou-se de forma transversal na sociedade, abrangendo quer o cidadão utente dos serviços de saúde quer os próprios médicos. Progressivamente fomos utilizando mais antibióticos em mais situações, esquecendo o perigo, conhecido desde o início, da generalização de microrganismos resistentes, contra os quais os antibióticos tendencialmente foram perdendo eficácia. Atualmente, grande parte da população e muitos médicos têm ainda uma imagem inadequada dos antibióticos, promovendo a sua utilização em situações nas quais não têm qualquer benefício ou por períodos desnecessariamente prolongados. O problema é que, ao contrário de outros fármacos, os antibióticos, se inapropriadamente utilizados, promovem a redução da sua própria eficácia, mercê do aumento dos microrganismos resistentes.
Neste sentido, o que são e para que servem os antibióticos? Quais as regras gerais para a sua utilização?
Os antibióticos são medicamentos eficazes para tratar infeções provocadas, em geral, por bactérias. Cada grupo de antibióticos é eficaz face a determinadas bactérias. Há antibióticos, chamados de espetro de ação estreito, que são eficazes para matar poucos tipos de bactérias. Outros, designados de largo espetro, têm efeito sobre vários tipos de bactérias. Por sua vez, as bactérias podem ser sensíveis à ação de vários grupos de antibióticos ou resistentes a essa ação. Algumas são mesmo multirresistentes, isto é, as infeções que provocam só são tratáveis por um número muito reduzido de antibióticos. Como as bactérias mais sensíveis vão sendo mortas por diversos antibióticos, são selecionadas as mais resistentes que continuam a proliferar e a causar infeções mais difíceis de tratar.
Os antibióticos não são eficazes contra vírus. Portanto, não têm qualquer utilidade em situações como as gripes ou constipações. A primeira regra é não utilizar antibióticos em situações nas quais não têm qualquer utilidade, como a gripe, ou quando o benefício é irrelevante, como nas situações agudas de tosse e expetoração no jovem saudável.
Quando um antibiótico está indicado, a segunda regra é utilizá-lo apenas durante o tempo necessário, nem mais nem menos. Cabe aos médicos aconselharem os seus doentes, esclarecendo o porquê da indicação, ou não, para a toma destes medicamentos em cada situação. Para que cumpram esta função, os médicos têm que ter tempo suficiente em cada consulta e manter o nível de conhecimentos adequado sobre a matéria, o que lhes deverá ser garantido pelos grupos locais já existentes para o efeito, mas dotados de recursos humanos suficientes.
Uma terceira regra é não tomar o antibiótico que foi útil para um familiar, vizinho amigo ou para o animal de companhia, nem adquirir antibióticos sem receita médica.
Tendo em conta que a resistência bacteriana é hoje considerada um dos problemas de saúde pública mais relevantes a nível global, pedia-lhe que nos esclarecesse quanto às principais consequências do uso indiscriminado de antibióticos.
O uso indiscriminado de qualquer medicamento é errado, já que todos eles podem ter efeitos adversos, prejudicando a saúde se mal utilizados. Mas, no que respeita aos antibióticos, as principais consequências prendem-se precisamente com a seleção de bactérias cada vez mais resistentes e que provocam infeções mais difíceis de tratar. Nas últimas décadas, envolvemo-nos num ciclo vicioso no qual utilizámos antibióticos contra as bactérias existentes, aos quais essas bactérias se tornaram resistentes, após o que utilizámos antibióticos contra essas, que, por sua vez, se tornaram resistentes, e passámos a utilizar outros antibióticos. O problema é que as bactérias geram resistências mais depressa do que novos antibióticos são descobertos e, nos últimos anos, devido às regras de mercado, instalou-se mesmo uma escassez de novos antibióticos. Sobram, assim, bactérias resistentes e faltam antibióticos eficazes. É como se nos estivéssemos a dirigir, retrogradamente, para os anos em que não tínhamos antibióticos para matar as bactérias. Este caminho tem que ser invertido!
E qual o impacto social e económico das infeções causadas por bactérias resistentes a antibióticos?
Como já sabíamos, e o voltam a demonstrar os estudos agora publicados, o impacto é enorme. Socialmente, as projeções existentes e globalmente citadas calculam que, se nada de diferente for feito até lá, no ano 2050 morrerão 10 milhões de pessoas por ano, em todo o mundo, (390.000 na Europa) por infeções devidas a estas bactérias. A ser assim, seria esta a primeira causa de morte nesse ano. Mas já hoje, são 700.000 por ano as mortes por este motivo a nível global. Em Portugal, os estudos apontam para mais de 3 mortes por dia, atualmente, e 40.000 mortes até 2050, por esta causa.
Mas para quem considere mais importantes os aspetos financeiros, e não sendo conhecidos números da realidade nacional, calcula-se que estas infeções determinavam, já no ínício desta década, uma despesa acrescida de 20.000 milhões de dólares, só em 2015, nos EUA. No orçamento federal norte-americano para 2016, a administração Obama dotou a rúbrica relativa ao combate a estas infeções com uma verba de 1.200 milhões de dólares. Segundo um relatório do Banco Mundial, publicado no mesmo ano, estas infeções, por si só, terão uma repercussão superior a 5% do PIB nos países com menos recursos e provocarão consequências graves nos níveis de pobreza, nos custos da saúde, na produção alimentar, e mesmo no comércio mundial.
Quais os grupos mais vulneráveis a estas infeções? Quem está em risco?
Os grupos mais vulneráveis e que estão em maior risco, como é natural, são as pessoas com saúde mais precária, designadamente aquelas com doenças que comprometem as defesas imunitárias e com frequentes contactos com os cuidados de saúde. Principalmente nos episódios de hospitalização, a situação destas pessoas obriga a que os profissionais de saúde cumpram rigorosamente boas práticas de prevenção da transmissão da infeção.
No entanto, este é um problema que pode afetar qualquer pessoa, quando contrai uma infeção, mesmo as infeções mais comuns e adquiridas na comunidade. A tendência de aumento da resistência aos antibióticos tem-se manifestado mesmo em bactérias responsáveis por infeções que ocorrem fora dos hospitais.
Isto não quer dizer que a maior parte das pessoas, nomeadamente quando contactam com os cuidados de saúde, adquiram uma infeção por bactérias multirresistentes. O número dos que contraem infeções até tem diminuído, mesmo no nosso país, embora seja ainda elevado, cerca de 8% dos internados. O que se passa também é que têm aumentado as infeções provocadas pelas bactérias mais resistentes e, portanto, o risco de contrair uma destas infeções tem aumentado.
Relativamente ao estudo publicado na revista The Lancet Infectious Diseases, que incide sobre esta matéria, que dados relativos a Portugal preocupam as autoridades competentes?
Se me permite, direi que essa pergunta deve ser endereçada às autoridades competentes.
Na minha opinião, e na opinião de muitos profissionais do controlo de infeção e das resistências aos antibióticos, os números agora conhecidos vêm confirmar a persistência de um problema grave, para o qual temos vindo, com sucesso limitado, a tentar sensibilizar os decisores. Acontece que nos últimos anos se verificou em Portugal um inflexão em alguns indicadores que anteriormente vinham piorando, nesta área. Isto é verdade. Em algumas bactérias tem-se verificado uma diminuição das resistências, embora limitada. O número de infeções hospitalares diminuiu. O consumo de antibióticos diminuiu, a meio desta década. Só que na maior parte dos casos estas evoluções são lentas, comparativamente com o que aconteceu em países que empenharam recursos suficientes, essencialmente humanos, nesta área. Em Portugal, o consumo de antibióticos voltou a subir nos últimos anos, aguardando-se a divulgação dos dados relativos a 2017. E, mais importante, têm proliferado as bactérias mais resistentes, cuja prevalência tem aumentado perante o pouco rigor nas práticas de prevenção seguidas em diversas instituições.
Na minha opinião, independentemente do que possa ter melhorado, e algumas coisas melhoraram, mais de 3 mortes por dia, hoje, e 40.000 previsíveis até 2050, faz deste um problema não escamoteável. Quem pretenda, ou consiga ignorá-lo, torna-se necessariamente corresponsável perante as vítimas, as suas famílias, e toda a sociedade.
Na sua opinião, que medidas deveriam ser tomadas para reverter esta tendência?
As medidas estão estudadas e são conhecidas, existem recomendações claras a nível mundial. A primeira, relaciona-se com a necessidade de dotar esta frente de trabalho de recursos humanos, médicos, farmacêuticos, enfermeiros, outros técnicos, que possam implementar as estratégias adequadas. Estas estratégias devem ser dirigidas à promoção da utilização adequada dos antibióticos, a qual passa principalmente por uma prescrição correta, mas não deve limitar-se a esta etapa. Por outro lado, a promoção de boas práticas de prevenção da transmissão da infeção nos hospitais e outras unidades de saúde, evitando situações nas quais a utilização de antibióticos de largo espetro é mais prevalente, concorre para e diminuição da seleção de bactérias resistentes.
Outra ação fundamental é o aumento da literacia em saúde das populações, com destaque para uma maior noção da importância do uso racional do antibiótico, à imagem do que já se conseguiu, por exemplo, nos países do norte da Europa.
As medidas são perfeitamente conhecidas. Cabe aos gestores, aos decisores a nível local e nacional, a sua implementação.
Para além do uso racional dos antibióticos, os especialistas afirmam que tem de existir um melhor controlo das infeções hospitalares. Como poderia isto ser feito?
As boas práticas de prevenção e controlo das infeções hospitalares são também conhecidas e recomendadas a nível europeu e mundial. Em Portugal, a implementação destas práticas é função dos grupos coordenadores locais, regionais, e da direção nacional do Programa de Prevenção e Controlo de Infeções e da Resistência aos Antimicrobianos (PPCIRA), programa prioritário da DGS. Mas esta implementação exige que sejam alteradas muitas das rotinas de trabalho, incorretas, dos profissionais de saúde, pelo que estes grupos devem ser dotados de recursos humanos que lhes permitam desenvolver a sua atividade e atingir este objetivo de otimização das práticas nesta área, única forma de garantir a segurança das pessoas internadas. Esses recursos estão legalmente previstos, mas na generalidade das unidades de saúde estas disposições legais não são cumpridas e os meios atribuídos à prevenção e controlo da infeção são claramente insuficientes. Ou seja, esta área não é, na prática, considerada uma das prioridades na gestão das unidades de saúde portuguesas.
Para terminar, e ainda no âmbito do estudo apresentado, que outras considerações gostaria de fazer?
Os números falam por si. Em termos materiais e financeiros, temos que atribuir recursos à resolução deste problema, não por sermos um país rico mas precisamente porque não nos podemos dar ao luxo de manter esta despesa, ao nível do que já referi, com estas infeções. Mas, principalmente, não podemos achar normais, sem incrementarmos o nível de esforço, os números agora divulgados, e recordo, mais de 3 mortes por dia, mais de 1150 por ano, devido a infeções por microrganismos multirresistentes – Uma epidemia silenciosa.