Infeção por Citomegalovírus: doença em doentes transplantados é difícil de tratar
O que é e como se transmite o Citomegalovírus?
O Citomegalovírus ou CMV, é um vírus da família dos vírus herpes e, tal como estes, causa infeção latente com potencial de reativação. Em indivíduos imunocompetentes (sem défices inatos ou induzidos do sistema imune) não causa, habitualmente, quaisquer sintomas, não constituindo, por isso, uma preocupação para a população em geral. A transmissão pode ocorrer por múltiplas vias, habitualmente surgindo através de contacto próximo com indivíduos infetados, sendo transmissível por via respiratória, através de gotículas, bem como por exposição a fluidos corporais ou por via sexual; o vírus vive em superfícies, portanto também pode haver transmissão sem contacto direto com um indivíduo afectado.
Estimando-se que entre 70 a 80% da população já tenha sido infetada em algum momento da sua vida pelo citomegalovírus, como podemos saber se somos portadores do vírus?
Os indivíduos que contactaram com CMV e que, portanto, são portadores assintomáticos do mesmo, podem ser facilmente identificados através da presença de anticorpos específicos para o vírus em análise sanguínea. Dado que a importância deste conhecimento, para a esmagadora maioria da população, é mínima, não é um teste que se faça por rotina, ou que seja, de todo, necessário.
O que explica o facto de esta infeção ser quase sempre assintomática? (pelo menos no que diz respeito a um primeiro contato com o vírus)
O CMV não é, habitualmente, muito virulento, ou seja, não costuma causar infeção muito significativa – tal como a maioria dos vírus com os quais entramos diariamente em contacto. Isto justifica-se pela competência do nosso sistema imunitário, que é capaz de eliminar a ameaça deste vírus com facilidade, embora seja incapaz de o erradicar por completo.
Quando se manifesta, quais os principais sintomas? Que sinais podem levantar a suspeita de infeção por citomegalovírus?
Quando a infecção por CMV tem expressão clínica, habitualmente manifesta-se com sintomatologia inespecífica, comum nas infeções virais, como mal-estar geral, fadiga, febre e dores musculares. Pode ainda surgir como uma síndrome mononucleósida, semelhante à mononucleose infeciosa (causada por outro vírus da família Herpes, o vírus Epstein-Barr) – nesses casos pode ainda haver aumento transitório do baço, bem como aumento dos gânglios linfáticos, embora estes sintomas sejam raros.
Quais os principais riscos desta infeção? Que complicações lhe estão associadas?
O impacto da infeção por CMV nos indivíduos imunocompetentes é praticamente nula, sendo a infeção grave extremamente rara, tendo maior importância quando a infeção ocorre durante a gravidez ou no período imediatamente após o parto. Nos indivíduos imunodeprimidos, no entanto, a reativação do vírus pode levar a doença por CMV, que pode afetar múltiplos órgãos e tem mortalidade associada significativa. Os órgãos mais frequentemente afetados são os intestinos, com diarreia e dor abdominal; os pulmões, com pneumonia pelo vírus, de muito difícil resolução; e os olhos, com retinite a CMV, causando alterações da visão.
O risco está aumentado em indivíduos imunodeprimidos. Neste sentido, qual o seu impacto no doente transplantado?
Os doentes submetidos a transplante de medula óssea passam por um processo de reset do sistema imune, ficando quase com o sistema imune de um bebé. Deste modo, a imunidade específica para vírus e outros patogénicos desaparece, havendo necessidade de “reaprender” como lidar com estas infeções – nomeadamente, nos casos em que é possível, através de um novo programa de vacinação. O estado de portador de CMV é ingrato, porque o vírus, que se manteve latente toda a vida, deixa de estar contido pelas células do sistema imune durante um período após o transplante, que pode ser mais ou menos longo, dependendo de vários fatores, mas que habitualmente é de 3 a 6 meses – o tempo que costuma ser necessário para a nova medula começar a produzir células específicas para o controlo do vírus. Nesse período pode, portanto, reativar, encontrando-se o doente em risco de desenvolver doença por CMV. Esta reativação constitui fator de risco para mortalidade após transplante, portanto merece um foco de atenção importante por parte da comunidade médica envolvida em transplante de medula.
Como se podem minimizar os riscos? Quais os cuidados a ter?
Os riscos da reativação a CMV podem ser minimizados através da escolha de dadores de medula portadores do vírus quando o transplante é feito a doentes também portadores (o mais comum), porque com o transplante, além de células muito imaturas, que vão levar à formação do novo sistema imune do doente, infundimos também algumas células de defesa, que ajudam a conter uma eventual reativação. No caso de doentes não portadores é crítica a escolha de dadores não portadores, para prevenir uma primeira infeção no período precoce pós-transplante (que é extremamente rara). Outra medida importante é a seleção de derivados sanguíneos (concentrados de eritrócitos e plaquetas) provenientes de dadores negativos para CMV aquando da transfusão destes componentes a doentes seronegativos.
Em suma, os doentes não têm que ter nenhum cuidado específico adicional para prevenir a reativação ou infeção por CMV – a evicção de contacto com pessoas com suspeita de infeção viral ou bacteriana e o cuidado com a limpeza e desinfeção das mãos e superfícies, medidas já tomadas rotineiramente por estes indivíduos, são as únicas medidas preventivas importantes que estão do lado da pessoa tratada, e mesmo nesse caso servem para prevenir uma primeira infeção, e não reativação.
E qual o tratamento indicado para a doença adquirida por CMV?
Neste momento, as armas terapêuticas que temos para a doença por CMV são antivirais, como o ganciclovir, o valganciclovir e o foscarnet. Quando há falência destes, é possível, em contexto de ensaio clínico (quando disponível), utilizar infusões de células específicas para o vírus, amplificadas a partir do dador do doente ou de dadores voluntários, que é uma técnica com elevada taxa de sucesso.
Sabe-se que, nestes casos em particular, esta é uma infeção de difícil tratamento. Porquê?
A doença por CMV após transplante de medula é especialmente difícil de tratar, por vários motivos, além da demora na produção de células específicas, como previamente explicado. Em primeiro lugar, o diagnóstico pode ser difícil, sendo possível o aparecimento de doença específica de órgão sem deteção prévia de CMV no sangue, o que obriga a um elevado índice de suspeição e leva a uma confirmação diagnóstica demorada, com necessidade de biópsias ou técnicas especiais. Outro motivo, muito importante, é a necessidade de terapêutica imunossupressora no período após transplante, imperativa para prevenir a doença do enxerto contra o hospedeiro, mas que limita ainda mais a imunidade antiviral do indivíduo. Finalmente, apesar de existirem vários antivirais disponíveis, a sua eficácia não é absoluta.
Por fim, tratando-se esta de uma infeção bastante comum, como pode ser prevenida?
A prevenção da infeção por CMV não é, habitualmente, uma preocupação, pelo exposto – facilidade de transmissão viral com incidência extremamente baixa de infeção grave. A reativação em doentes submetidos a transplante de medula, no entanto, acarreta riscos significativos, pelo que há uma preocupação em relação à sua prevenção. A estratégia habitualmente tomada é a de terapêutica pré-emptiva, ou seja, abordagem precoce da reativação: são feitas monitorizações frequentes da reativação de CMV nos doentes após transplante e, caso se constate aparecimento de DNA viral, inicia-se de imediato terapêutica, o que permite, na maioria dos casos, controlo do vírus prévia à doença por CMV. Apesar de esta estratégia permitir, hoje em dia, que a doença por CMV seja uma complicação extremamente rara do transplante de medula óssea, o aparecimento possível de doença sem virémia (deteção do vírus no sangue) prévia, faz com que não consigamos prevenir todos os casos de doença pelo vírus. Assim, tem havido um grande esforço de investigação para a criação de fármacos desenhados para prevenir a reativação viral, ao invés de a tratar, tendo o primeiro, o letermovir, sido aprovado este ano, após ter demonstrado redução significativa da incidência de reativação de CMV em doentes transplantados com alto risco de reativação, com melhoria aparente na sobrevivência global.