Hipocondria: a doença imaginária com sofrimento real
A hipocondria, ou nosomifalia, é hoje considerada uma verdadeira doença psiquiátrica, incluída no grande grupo dos “Transtornos de Sintomas Somáticos e Transtornos Relacionados” da mais recente classificação da Associação Americana de Psiquiatria, a DSM-5 (5ª Edição do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, publicada em 2013).
Por definição, um doente hipocondríaco é uma pessoa que se preocupa excessivamente com a sua saúde, valorizando demasiado um ou mais sintomas por si sentidos (aos quais atribui uma causa específica, geralmente grave) ou tendo o receio de ter ou de vir a ter uma doença, mesmo que não tenha qualquer sintoma suspeito dessa doença.
Para que se considere este diagnóstico, esta situação tem de durar mais de 6 meses, tem de ser realmente sentida pelo doente (não é fingida e não resulta de qualquer tipo de delírio ou alucinação) e não se enquadra no quadro clínico de qualquer outra doença mental.
Em geral, os hipocondríacos procuraram por todos os meios esclarecer as suas dúvidas e encontrar as doenças que pensam ter, através de múltiplas consultas médicas e de muitos exames complementares de diagnóstico, mas têm muita dificuldade em aceitar que não têm essas doenças, mesmo que os exames médicos concluam pela sua inexistência.
Pelo contrário, em vez de ficarem descansados, como sucede com a maioria das pessoas, os hipocondríacos sentem-se incompreendidos pelos outros, vivem muito perturbados e angustiados, continuam a achar que têm mesmo essas doenças e preocupam-se excessivamente com elas: estudam-nas exaustivamente na literatura ou na internet, procuram obsessivamente novos médicos para pedir mais exames, recorrem a medicinas alternativas, astrologia, cartomancia ou feitiçaria e muitas vezes tomam por iniciativa própria medicamentos que julgam ser úteis para tratar essas doenças.
Este percurso de sofrimento psicológico continuado leva os hipocondríacos a dedicar muito tempo, energia e dinheiro às suas preocupações com a saúde, condicionando a sua vida pessoal, familiar e social, desenvolvendo níveis elevados de ansiedade e chegando mesmo a entrar em depressão (por vezes com ideias suicidas como alternativa ao seu sofrimento).
São gerados níveis elevados de stress, que podem desencadear verdadeiras doenças psico-somáticas, como gastrites, úlceras, colites, “angina de peito”, hipertensão arterial e outras, mas é frequente que os hipocondríacos desvalorizem estas doenças, tal como normalmente não ligam a outros sintomas que possam sentir, deixando assim de identificar as doenças de que realmente sofrem e que deveriam ser tratadas.
Diagnosticar a hipocondria
A hipocondria pode surgir de forma “primária”, independentemente de qualquer outro problema psicológico, mas na maioria dos casos associa-se a outras perturbações ansiosas ou depressivas e é frequente encontrar na infância dos hipocondríacos situações stressantes, como abuso sexual, violência, morte de familiares ou preocupação mórbida com as doenças.
Esta doença surge habitualmente na adolescência ou no início da idade adulta, ocorre de igual modo no género masculino e feminino e distribui-se por todas as culturas, etnias e populações e por todos extractos sociais, embora seja um mais frequente nas pessoas com níveis de escolaridade e socio-económicos mais baixos.
Existem muitas pessoas com traços hipocondríacos (têm a “mania das doenças” e “vão muito ao médico”), mas a verdadeira hipocondria é relativamente pouco frequente, variando entre 1 e 7% da população, consoante os critérios de classificação usados, que têm mudado ao longo do tempo.
Pela sua própria natureza, a hipocondria é difícil de diagnosticar, porque os doentes não acham que sofrem de um problema mental e por isso não recorrem a consultas de psicologia ou de psiquiatria, preferindo consultar médicos generalistas ou especialistas das doenças físicas que pensam ter. No entanto, como em geral consultam muitos médicos ao longo dos anos, cada um deles não chega a perceber que está perante um hipocondríaco e aceita como adequada a preocupação com o sintoma ou a doença e pede os exames necessários para o seu esclarecimento.
É por isto que, na maioria dos casos, são os familiares e os amigos dos doentes que suspeitam do problema e conseguem que os hipocondríacos procurem ajuda adequada.
Tratar a hipocondria
A base do tratamento da hipocondria é psicológica (terapia cognitivo-comportamental, dessensibilização sistemática, abstração selectiva, psicoterapia analítica), procurando-se fazer uma espécie de reprogramação da forma como o doente interpreta os seus sintomas e receios e da maneira com se comporta perante eles, de modo a reduzir os níveis de ansiedade e de sofrimento psicológico que a hipocondria acarreta.
Não se pretende que o hipocondríaco deixe de sentir as suas queixas ou medos, mas sim que passe a aceitá-los como “naturais” e “funcionais” e não como sinónimo de doença grave. Deve promover-se a integração saudável do doente na vida familiar, social e profissional, reduzindo a abstenção escolar ou laboral e tornando o hipocondríaco numa pessoa mais sociável, que consiga estar com os outros sem estar permanentemente a falar das suas preocupações com a saúde.
É fundamental que exista simultaneamente um acompanhamento por um médico assistente no qual o hipocondríaco confie (médico de família ou outro), que promova uma atitude tranquilizadora para o doente e esteja disponível para o atender quando necessário, sem descurar a necessária prevenção, rastreio e tratamento de outras doenças.
Deve tratar-se a ansiedade e a depressão associadas à hipocondria, se necessário com o recurso a ansiolíticos e anti-depressivos, sendo pouco frequente a necessidade de recorrer a medicação psicotrópica mais agressiva.