As Hepatites Víricas
O conhecimento das hepatites víricas, anteriormente designadas por hepatite epidémica (hepatite A) e hepatite sérica (hepatite B), vem de tempos muito recuados, da Grécia antiga e do império romano, quando as epidemias de icterícia faziam razia nos exércitos imperiais. Nos tempos modernos estão bem identificados os surtos de hepatite originados por produtos derivados do sangue contaminados com vírus como, por exemplo, vacinas ou imunoglobulinas. Uma fonte importante de contágio era, no passado, as transfusões sanguíneas (hepatite C), um flagelo que ensombrou nos anos sessenta as operações de coração aberto, mas que hoje se tornou uma raridade com a adopção da triagem dos dadores nos bancos de sangue. Para se ter a noção do que foi o progresso nesta área refira-se que após a triagem dos dadores de sangue para a hepatite B (pesquisa do AgHBs) e hepatite C (anticorpo contra o vírus da hepatite C), o risco de contrair uma hepatite vírica numa transfusão baixou para 1 caso em 100.000 transfusões.
A descoberta do antigénio s da hepatite B há 50 anos, então designado por antigénio Austrália e hoje conhecido como AgHBs, além de ter o mérito de trazer para a ribalta o agente da hepatite B e de abrir a caixa de Pandora das hepatites víricas, contribuiu de forma decisiva para a afirmação da Hepatologia como especialidade. Posteriormente, foi descoberto o agente da hepatite A, dando azo à então designada hepatite não-A, não-B, a qual após múltiplas peripécias científicas revelou a famigerada hepatite C. Já então tinha sido descoberta a hepatite delta (D), e não muitos anos depois foi isolado o vírus da hepatite E, responsável por uma hepatite aguda (em certas circunstâncias pode tornar-se crónica), cujas epidemias em países em desenvolvimento estão associadas a risco de vida para as grávidas. Estava assim completa a lista das conhecidas hepatites víricas – A, B, C, D, E –, assim designadas por estes vírus possuírem tropismo para o fígado. A sua importância científica, clínica, económica e social é por demais conhecida e não para de crescer.
Poder-se-ia dizer que são todas iguais e, simultaneamente, todas diferentes. Se pouco diferem nas suas manifestações clínicas agudas, quase passando incógnitas, já o mesmo não se pode dizer dos respectivos vírus. São todos diferentes e com particularidades muito curiosas: os vírus da hepatite A e E são transmitidos por via fecal-oral e dão origem a doenças agudas, autolimitadas, enquanto os vírus das hepatites B (o único vírus DNA), delta e C são transmitidos por via parentérica e podem originar doenças crónicas. O vírus da hepatite B é o vírus mais pequeno que infecta o homem, tem um DNA circular, de dupla cadeia incompleta, e produz através de um mecanismo engenhoso proteínas únicas com uma extensão superior em 50% a extensão do seu DNA; o vírus delta é um vírus defectivo que usa o invólucro do vírus da hepatite B (AgHBs) para formar o seu próprio invólucro, o que significa que a hepatite D não ocorre na ausência de hepatite B. A descoberta do vírus da hepatite C, em 1989, é um caso único na história da virologia, dado que foi clonado sem nunca ter sido isolado.
As complicações provocadas pelos vírus de transmissão parentérica (B,C,D), nomeadamente a cirrose e o temível cancro do fígado, são responsáveis por centenas de milhar de mortes anualmente em todo o mundo: a hepatite B, sobretudo na Ásia e África, e a hepatite C, também nesses continentes mas com particular relevância nos países ocidentais. Pese embora este cenário negro, começa a divisar-se uma janela de esperança com a redução de portadores do vírus da hepatite B, agora estimados em 240 milhões, e a possibilidade de eliminar a hepatite C. Justifica-se, portanto, o objectivo da OMS em reduzir até 2030 a incidência em 90% e a mortalidade em 65% destas duas hepatites.
Até há pouco tempo, presumo que ainda seja verdade, a hepatite vírica constituía a área da Medicina onde mais se investigava e mais se publicava. Tamanha produção científica teve o seu epílogo no conhecimento pormenorizado da biologia e do ciclo de vida dos vírus, o que levou ao desenvolvimento de vacinas protectoras (hepatites A, B, E) e de medicamentos eficazes, sobretudo para a hepatite C.
Neste momento, a luta contra a hepatite vírica passa essencialmente por duas frentes: vacinação e terapêutica antivírica. A vacina para a hepatite B é uma realidade com três décadas de existência e com resultados notáveis. Constitui seguramente um marco na história da Medicina porque, além do mais, é uma vacina anti-oncogénica. A vacina para a hepatite A ganha cada vez mais terreno na medida em que a infecção, ao contrário do que acontecia no passado, afecta grupos etários mais idosos e com maior risco de complicações. A vacina para a hepatite E já está disponível e em vias de ser aplicada em larga escala. No caso da hepatite C o controlo da infecção passa pela massificação do rastreio e da terapêutica antivírica. Sendo o homem o único reservatório do vírus e considerando a eficácia dos medicamentos disponíveis, com taxas de cura da infecção próximas dos 100%, é possível ambicionar um mundo sem hepatite C.