Hepatite C: aumentar o número de pessoas diagnosticadas continua a ser o desafio
A hepatite C é uma infeção causada por um vírus que se aloja no fígado, levando à inflamação e destruição progressiva deste orgão. Estima-se que 3% da população mundial esteja infetada pelo VHC.
Em Portugal desconhece-se o número preciso de casos, estimando-se que a percentagem de portugueses “com teste positivo” ronde 1% - aproximadamente 100 mil casos. “Poucos países têm dados muito concretos. Na atualidade, talvez seja um número inferior”, começa por dizer Rui Tato Marinho, hepatologista e vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia.
O European Centre for Disease Prevention and Control, agência da União Europeia, divulga, por exemplo, que em França a prevalência do anticorpo da hepatite C é de cerca 0,8%, e em Espanha, 1,1%. “Portugal não deve andar muito longe desses números”, adianta.
“De qualquer modo, dos casos positivos (anti-VHC positivo) apenas três quartos têm o vírus positivo (carga vírica positiva) com consequente risco de evolução de doença”, esclarece acrescentando que, em Portugal, já se trata a hepatite C há 30 anos. “Mais importante do que insistir muito em estimativas é identificar potenciais infetados que o desconhecem e tratá-los”. É que, de acordo com este especialista, estes doentes têm “direito ao que de melhor existe a nível de tratamentos e a serem tratados para uma doença que os pode afetar de modo muito impactante”.
A transmissão do vírus VHC pode acontecer através da contaminação com sangue que contenha o vírus. “Pode ser no contexto da partilha de material usado no consumo de drogas, em tatuagens, relações sexuais de risco, desprotegidas sem preservativo, transfusões antes de 1992”, explica o vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia. “Os profissionais de saúde também são um grupo de risco devido à sua atividade profissional”, adverte.
Tratando-se de uma doença silenciosa – a maioria dos doentes não apresenta qualquer sintoma – o diagnóstico, feito através de análise específica (anti-VHC) comparticipada pelo Serviço Nacional de Saúde, é essencial para um bom prognóstico clínico.
"Temos de ser pragamáticos e «executivos» na cura de uma doença potencialmente grave", afirma Rui Tato Marinho
“A hepatite C é uma doença assintomática que pode não apresentar qualquer sinal durante anos ou mesmo décadas”, esclarece o especialista.
Quando apresenta sintomas, “como dores e aumento do volume abdominal, vómitos com sangue derivado de rotura de varizes do esófago, alterações mentais como confusão mental, agressividade (encefalopatia hepática) ou um nódulo maligno (carcinoma hepatocelular)”, a doença já se encontra numa fase avançada.
A cirrose é a principal complicação desta patologia e resulta, quase sempre, em transplante hepático, apresentando um risco de 10 a 40% de evoluir para cancro. Porém, não é a única. “Nalguns casos, felizmente raros, mas que existem, a pessoa pode ter complicações noutros órgãos apesar do fígado não ter ainda cirrose: problemas visuais, renais, na pele, linfomas, problemas neurológicos (nervos, medula ou cerebrais)”, acrescenta Rui Tato Marinho.
Eliminação definitiva do vírus em 96% dos casos
“A hepatite C é considerada uma infeção crónica e oncogénica. Já se cura a hepatite C há cerca de 30 anos, mas com menor eficácia”, afirma o vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia revelando que em 1986 o seu tratamento resultava em 6% dos casos.
De acordo com o especialista, durante muito tempo, “o tratamento para combater o vírus era feito com recurso a injeções associadas a cinco ou seis comprimidos de Ribavirina que se estendia pode seis meses a um ano”. Pecava por inúmeros efeitos secundários e nem todos os doentes podiam receber o tratamento e alguns não o conseguiam aguentar.
“Na atualidade, a eficácia na eliminação do vírus é superior a 95% e a maioria dos tratamentos dura 12 semanas”, revela o médico.
No entanto, nos casos em que a doença já se encontra numa fase avançada, o tratamento pode não acabar com a eliminação do vírus. “Para quem tem cirrose, é mandatório realizar uma ecografia abdominal de seis em seis meses para toda da vida dado o risco de cancro se manter (apesar de inferior a 1% por ano). Quem já tem varizes necessita também de ser seguido em consulta especializada”, explica Rui Tato Marinho.
A nova terapêutica introduzida e comparticipada pelo estado veio permitir, deste modo, que qualquer pessoa infetada com o vírus VHC possa ser tratada. “O Estado português colocou à nossa disposição a hipótese de tratar as pessoas com os medicamentos mais modernos, de uso exclusivamente oral, quase sem efeitos secundários e com uma eficácia na eliminação definitiva do vírus em 96% dos casos”, revela o clínico que admite que este é um resultado sem paralelo na Medicina. “As outras doenças crónicas e oncogénicas não são passíveis de cura, apenas controlo, como é o caso da hepatite B e da infeção VIH”, afirma face a esta conquista.
Não obstante, o diagnóstico de doentes infetados continua a constituir o principal desafio nesta área.
“Os benefícios de identificar e tratar as pessoas infetadas são múltiplos, dos quais os mais importantes são a eliminação definitiva do vírus e anulação da transmissão de uma doença infeciosa, a par da redução dos riscos de evolução para cirrose e da cirrose para cancro do fígado. Em muitos casos, estavamos a falar de salvar vidas”, reforça o especialista que considera de extrema importância a realização do teste da hepatite C, pelo menos uma vez na vida.
“É crucial apostar na prevenção e informação sobre esta doença, designadamente através de uma mensagem de esperança na eliminação do vírus para toda a vida”, acrescenta. “Mesmo em quem tem a doença mais avançada há muito a fazer. Se tiver acompanhamento adequado, as consequências da hepatite C podem ser minimizadas ou mesmo anuladas”, conclui.