Enfermeiros, o que parece e o que é
Quando chegamos a uma consulta sonhamos com uma enfermeira cliché, com já uma certa idade, carinhosa, de voz doce, como nos livros da nossa infância, que com esse efeito placebo de confiança representa logo metade do cuidado necessário. Mas podia ser um enfermeiro bem-disposto, que passa por nós a cantarolar. E por isso, quando nos deparamos com enfermeiros irritados, bruscos, que não nos ouvem logo, em voz alta ou baixa precipitadamente criamos anticorpos centrando no profissional um problema que não está nele mas é sistémico e diz respeito à gestão de fundos públicos e força de trabalho. A forma como o cidadão vê os enfermeiros passa por muitos factores mas também passa por este: relação de trocas fugazes, em que nem os cidadãos conhecem o trabalho dos enfermeiros nem os enfermeiros sabem o que está por detrás da vida dos doentes.
Os enfermeiros portugueses são expostos a uma brutalidade de turnos em regime de horas extraordinárias porque assim evita-se a contratação de novos profissionais – tem sido na sua resistência física e moral que repousam os cuidados e não na protecção laboral que lhe é devida. São, de todos os funcionários públicos, aqueles em que a relação formação-salário é mais desequilibrada, isto é, que ganham menos na relação com a sua formação da força de trabalho. Estão ameaçados também da mudança de relações laborais que abarca todos os sectores, isto é, de um despedimento de facto de quem ainda tem relações de trabalho-padrão, protegidas, para serem substituídos, na totalidade ou quase, por trabalhadores precários – às vezes são despedidos como trabalhadores fixos para serem contratados como trabalhadores precários, a ganhar em média 30 a 40% menos de salário. No limite, são forçados à imigração. Esta mudança, que sobretudo permite um aumento crescente de uma economia virada para rendas fixas, como a remuneração de juros da dívida pública (usando dinheiro do Estado Social, nomeadamente do SNS) ou as parcerias público-privadas, pode ser feita alegando «mobilidade especial», «extinção do posto de trabalho» ou simplesmente recusando-se a contratar novos profissionais sobrecarregando os que estão a trabalhar com mais horas, mais doentes, mais tarefas…Este processo tem levado a um fenómeno conhecido nos estudos do trabalho que vulgarmente se chama de exaustão, e que tem como consequência o cansaço, irritabilidade, aumento do número de acidentes de trabalho, esgotamentos, doenças físicas e mentais.
Os cuidados de enfermagem são essenciais e deviam ser ampliados, em nome de uma correta gestão dos fundos públicos – doentes acamados com menos cuidados vão ter mais doenças; recém mães sem experiência de amamentação ou o encerramento dos berçários vão criar dificuldades que facilmente se transformam em cansaço que abre brechas no sistema imunitário (é necessário lembrar que na Inglaterra ou na Holanda nos primeiros 2 meses há enfermeiros a acompanhar diariamente as recém mães); doentes seguidos no período de pós tratamento hospitalar, por exemplo, têm menos probabilidade de ter reincidências/recaídas não programadas; educação alimentar, física, ajuda a protelar doenças como a diabetes ou mesmo evitá-las, etc… Os exemplos de investir em cuidados de enfermagem são quase infinitos. E todos eles acarretam melhores condições laborais para os enfermeiros, melhores cuidados de saúde para a população e gestão mais eficiente dos orçamentos públicos de saúde.
Não se pode, finalmente, alegar insuficiência de recursos para fazer esta mudança, que relembramos outra vez, ela própria iria acarretar, na nossa opinião – e é possível criar uma medida de eficiência que o prova economicamente -, uma diminuição ou contenção de custos. Como observamos neste gráfico[i] podemos observar que a diferença entre o custo total e o custo final na saúde, como um todo, era de 1,0% em 1995 e 1,5% em 2010, o que revela uma perda de produtividade com um custo de 0,5% do PIB. Por outro lado, enquanto a produção estatal (a verde) caiu de forma drástica juntamente com o rendimento dos trabalhadores, o que é esperado uma vez que boa parte dessa produção estatal é precisamente serviço médico prestado, os gastos com a produção privada mercantil (a azul) subiram de 1,8% do PIB em 1995 para 5,3% em 2009 e 5,2% em 2010. Significa isto que a subcontratação e serviços privados dentro do SNS tem criado simultaneamente menos produtividade e mais lucro – tudo à custa dos salários dos profissionais de saúde. Podemos ver que esse movimento de privatização encapotada dá um salto em 2002, coincidindo a introdução da gestão empresarial nos Hospitais Públicos.
[i] Rui Viana Pereira e Renato Guedes in Varela, Raquel, Quem Paga o Estado Social em Portugal? (Bertrand, 2012)