E os problemas de base dos serviços de saúde?

Enfermeiros com mais competências nas urgências, sim.

Atualizado: 
13/03/2015 - 17:13
O primeiro trimestre de 2015 começou particularmente difícil para os profissionais que trabalham nas urgências e a população que a elas tiveram de recorrer.

Dependendo do quadrante político, institucional ou social, as análises divergiram. Desde a explicação de que foi um quadro anormalmente atípico, causado pela conjugação do número de casos de gripe associados às complicações crónicas dos utentes, o responsável pelo anormal afluxo às urgências, até à ilação da falta de profissionais ou da sua exaustão, vários foram os argumentos debatidos para o caos que se verificou nalgumas instituições.

Reflectindo, a esta distância, sobre as polémicas nas várias urgências, a conclusão é algo paradigmática na forma como os portugueses e a generalidade dos governantes olham para a saúde. Para a população quando algo corre mal normalmente vem associado à falta de médicos, para os governantes a situação é normal nesta altura do ano e “arranjam-se” soluções temporárias para fazer face ao problema. Não tão raramente, ouvimos ainda que é a população que usa mal as opções que tem à disposição, entupindo as urgências com situações que poderiam ser resolvidas no centro de saúde. Raríssimas vezes, os enfermeiros são falados. Ora, tanto para a população, como para os governantes, os enfermeiros não são problema nem fazem parte da solução.

Enfermeiros com mais competências nas urgências, sim. E os problemas de base dos serviços?

Contudo, nos últimos tempos assistiu-se ao discurso de os enfermeiros poderem ser solução, suprindo a falta de outros profissionais, aumentando assim as suas competências. É preciso ter cuidado com esta leitura. Não quer dizer que os enfermeiros não tenham competências para tal, pelo contrário. Mas esta não é a solução para resolver os problemas de base dos serviços de saúde. Para quando a correta alocação de enfermeiros nos serviços? Quem irá colmatar a falta de enfermeiros que lamentavelmente e tão frequentemente podemos constatar nas visitas de acompanhamento do exercício profissional? Quem irá colmatar a falta de enfermeiros que vêem as suas atividades aumentarem, acrescentando mais ao que tanto fazem, sendo frequentemente menos do que deviam ser? É aqui que reside o problema. Apesar da sua comprovada importância, a maior parte da sociedade desconhece aquilo que os enfermeiros fazem e se são ou não suficientes para o que fazem. Isto acontece porque o financiamento em saúde é feito a partir da atividade médica. Quando o financiamento também for efetuado pela atividades dos enfermeiros, aí os enfermeiros farão parte da solução e da caracterização do problema. Então passará a ser visto o que é feito e o que deixa de ser efectuado.

A falta de condições de segurança para as populações que recorrem aos serviços de saúde tem sido uma preocupação constante da Ordem dos Enfermeiros. Temos denunciado publicamente as instituições de saúde que não têm enfermeiros em número suficiente. Por não existir qualquer instrumento que orientasse as instituições de saúde e seus gestores sobre o número de enfermeiros necessários para o seu funcionamento com condições de segurança para os doentes, a Ordem dos Enfermeiros publicou recentemente em Diário da República o Regulamento n.º533/2014 – a Norma para o Cálculo de Dotações Seguras dos Cuidados de Enfermagem, sendo este um instrumento regulador do número de enfermeiros necessários por cada serviço de forma a garantir a segurança dos doentes que a eles recorrem. Este é um importante instrumento, não só para os profissionais, mas também para os cidadãos, que vêem assim salvaguardadas as condições de segurança e qualidade que esperam e a que têm direito em qualquer serviço de saúde.

Manter a cabeça “enterrada” na areia terá os seus efeitos a médio/longo prazo

O que aconteceu nas urgências é de lamentar. Todavia, qualquer que seja a análise, não podemos esquecer-nos de que existem diversos serviços e instituições que não têm eco na comunicação social, que se debatem com profundas dificuldades, associadas a reduzido número de enfermeiros para as necessidades identificadas. São equipas exaustas e a prestar cuidados em contextos que põem em causa a segurança dos doentes, pela insuficiência de materiais para prestar cuidados, pelas instalações degradadas e pouco dignas, que ao invés de proporcionarem um ambiente seguro para doentes e profissionais, constituem-se elas mesmas como um risco acrescido. Esses contextos têm sido denunciados e continuar a manter a cabeça “enterrada” na areia terá os seus efeitos a médio/longo prazo. Não há investimento na promoção da saúde e prevenção da doença, não existe planeamento estratégico em saúde a longo prazo. Mantém-se a gestão da saúde da nossa população com prazos de 4 anos. Uma população saudável é uma população feliz, ativa, trabalhadora, mas esse investimento tem de ser feito desde o nascimento, na comunidade, onde as famílias vivem, onde as crianças estudam, e não apenas quando ficam doentes.

Faltam profissionais de saúde nos cuidados de saúde primários, nas comunidades, nas escolas e sobrecarregar o que falta não será a melhor solução, repor o necessário é o caminho. É urgente e não é só para as urgências.

 

Isabel de Jesus Oliveira, Presidente do Conselho Diretivo Regional da Secção Regional do Centro da Ordem dos Enfermeiros

 

Autor: 
Isabel de Jesus Oliveira
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro e/ou Farmacêutico.
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Secção Regional do Centro da Ordem dos Enfermeiros