Testemunho na primeira pessoa

A Enfermagem portuguesa em situações de conflito

Atualizado: 
09/01/2015 - 16:23
Em 2013 a Enfermeira Joana rompeu o vínculo ao SNS para se poder dedicar integralmente à enfermagem em contextos de conflito. Já esteve no Paquistão, Gaza, República Democrática do Congo, Líbia, Líbano e Sudão do Sul. Angola e, de novo, o Congo serão os próximos itinerários de quem trabalha com a firme convicção de que um mundo melhor é possível.

Desde 2011 faço parte da pool de enfermeiros de cirurgia de guerra do Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV), sediado em Genebra.

Uma primeira missão de 6 meses em Peshawar, Paquistão, fez-me aprender as diretrizes do trabalho de um enfermeiro durante um conflito. Novos protocolos, novos procedimentos, um B-A-Bá de técnicas que, em Portugal, estavam longe de ser pensadas. Sem pressões externas, a medicação é reduzida ao indispensável, os procedimentos simplificados ao extremo e a característica de “Florence Nightingale” tem que se sobrepor: higiene e organização acima de tudo!

 

Principais aprendizagens? O facto de o CICV trabalhar com as autoridades locais doando equipamento e treinando o staff nacional. Para isso, basta enviar uma equipa-base de 6 pessoas: um chefe de projeto (administrador), um cirurgião, um anestesista, um enfermeiro de bloco operatório, um enfermeiro de urgência/enfermaria e um fisioterapeuta. Com estes 6 elementos podemos treinar um hospital inteiro, dêem-nos tempo e disponibilidade. Recorrendo a equipamento disponível permanentemente, adaptamos as nossas técnicas e procedimentos: a utilização de açúcar em pensos cavitados e vinagre para algumas feridas infetadas, permitem resultados extraordinários!

Em 2012 foi-me proposta uma segunda missão: desta vez, uma saída para um conflito em início no Norte Kivu, República Democrática do Congo. Três meses passados e o balanço era muito positivo: um hospital militar avaliado e apoiado, um outro hospital particular com um serviço autónomo do CICV para cirurgia a feridos de guerra e um sem-fim de desafios e dificuldades ultrapassados. O interesse e motivação eram cada vez maiores, e a vontade de me dedicar a tempo inteiro à enfermagem em conflito crescia.

 

Tendo provas dadas em situações-limite, acabei por ficar associada às equipas de emergência enviadas para conflitos: em dezembro de 2013 estive um mês na República Centro Africana, em agosto de 2014 foi-me proposto um mês em Gaza, e aguardo futuras necessidades para voltar ao calor do conflito.

Desde dezembro de 2013 que não tenho qualquer vínculo profissional com Portugal. Rescindi o contrato que me ligava ao Serviço Nacional de Saúde (Serviço de Urgência do antigo Hospital dos Covões, em Coimbra) por entender que um serviço não pode viver com uma enfermeira a meio-tempo – e nem me seriam autorizadas mais suspensões de contrato. Apesar do orgulho de pertencer a uma casa onde os cuidados de excelência eram reconhecidos por todos, compreendi que a possibilidade de uma carreira recompensadora era pouco mais do que uma miragem.

Para evitar longos períodos de espera antes de novas emergências humanitárias, trabalho também com uma organização humanitária dinamarquesa de desminagem (DCA). Fiz uma missão inicial na Líbia, como formadora de equipas de ambulância e coordenadora projetos na área de primeiros-socorros. Depois de integrada e conhecendo a dinâmica da organização e do trabalho em desminagem, sou agora responsável pelo treino e supervisão das equipas de ambulâncias nos diferentes países em que a DCA está presente. Depois da Líbia visitei o Líbano, escrevo agora do Sudão do Sul e, nos primeiros meses de 2015, passarei por Angola e pela República Democrática do Congo.

 

Um breve comentário sobre o Sudão do Sul…. O mais jovem país do mundo tem os piores indicadores de saúde e educação de que há registo! Tudo está por fazer: desde escolas a hospitais, de estradas a procedimentos administrativos… Um sem-fim de necessidades que acabam por me fazer sentir demasiado pequena e com muita sorte por ter nascido a mais de 5000 km de distância.

O meu trabalho humanitário não ficará por aqui. Se o CICV é motivador e empolgante, mas também extenuante e emocionalmente cru, o trabalho de formação das equipas de ambulância com a DCA permite-me recuperar energias e trabalhar em áreas menos comuns para um enfermeiro. Vou alternando ambas organizações, procurando a realização profissional que em Portugal me fugia. Esta é uma forma de levar a enfermagem portuguesa a outros horizontes, onde somos reconhecidos e sentimos que fazemos a diferença.

 

Impressões Pessoais

Tendo trabalhado em diferentes contextos, com condições indescritíveis, não posso deixar de recordar o sorriso das crianças que, indiferentes ao que os rodeia, continuam a procurar brincar e ser felizes.

Um dia uma mulher, no Congo, pediu-me:

“Leva a minha família contigo, para o teu país” ao que respondi “Não posso… O meu país não é um mar de facilidades: não há emprego, a saúde é cada vez mais cara, muitos passam fome…” e ouvi uma verdade de que amordaçou: “Aqui também é assim… Mas no teu país não há medo… O medo que sinto de ver um grupo de homens entrar em minha casa, violar as minhas filhas, matar-nos a todos, só porque o meu marido foi confundido com um soldado… E isto acontece comigo e com muitos outros… Acredita, que se o teu país só tem desemprego, saúde cara e fome, continua a ser melhor do que o meu…”… Trabalho com a firme convicção que o mundo melhor é possível e eu quero contribuir para chegar lá mais depressa.

É evidente que há dias em que pensamos desistir… Que todas as barreiras parecem inultrapassáveis e as saudades da segurança sentida em casa apertam demais… É nessas alturas em que olhamos à nossa volta e percebemos que não estamos sozinhos… Entendemos que escolhemos trilhar um caminho cheio de riscos, mas onde uma pequena vitória tem um gosto de medalha olímpica… É nessas pequenas vitórias que nos alimentamos e encontramos o impulso para continuar…

 

Desafios

Trabalhar com paquistaneses ou congoleses é totalmente diferente e impossível de comparar. A adaptação a culturas diferentes, religiões distintas ou valores diversos é fundamental para poder ser aceite e respeitado.

Com recursos muito limitados e sem quaisquer equipamentos eletrónicos, a observação torna-se a nossa primeira ferramenta. No Paquistão, como as mulheres devem ser protegidas dos olhares alheios, eram muitas vezes colocadas no fundo das salas (cuidados intensivos e sala de urgência não tinham uma separação formal de áreas para homens e mulheres), ocultadas por um biombo. Facilmente se compreende que sejam evitadas ou mesmo esquecidas pelos enfermeiros masculinos (que são a esmagadora maioria), correndo muito maiores riscos do que um homem na mesma situação.

Enquanto mulher num país árabe, tudo se apresenta desafiante. Na Líbia dei formação a um grupo de homens, um dos quais, por motivos religiosos, não podia olhar para mim ou dirigir-me a palavra. Imagine-se fazer um curso de primeiros-socorros onde um formando olha para o outro lado da sala. Incrível? Eu também não acreditaria se não tivesse passado por isso…

 

 

NOTA BIOGRÁFICA

Nome: Joana Barros e Sá

Data de Nascimento: 22/01/1983

Naturalidade: Coimbra

Formação:

  • Licenciatura em Enfermagem na Escola Superior de Enfermagem dr. Ângelo da Fonseca;
  • Pós-graduação em Enfermagem de Emergência Pré-Hospitalar na Escola Superior de Enfermagem S. Franscisco das Misericórdias;
  • Mestranda em Global Health na Universidade de Manchester.

Atividade Profissional:

  • Medical Coordinator na Dan Church Aid – Humanitarian Mine Action;
  • Enfermeira em programas de cirurgia de Guerra do CICV;
  • Formadora da Cruz Vermelha Portuguesa: Suporte Básico de Vida com Desfibrilhação Automática Externa, Primeiros-Socorros, Tripulante de Ambulância de Transporte.

 

Autor: 
Joana Sá - Enfermeira
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro e/ou Farmacêutico.