Efeito da taxa sobre vendas das farmacêuticas preocupa especialistas
Na leitura das medidas do Orçamento do Estado para o próximo ano, os olhos dos especialistas ouvidos pelo jornal Público caem antes na taxa que será criada sobre as vendas da indústria farmacêutica. Esta nova alteração em termos de política do medicamento preocupa algumas das pessoas ligadas ao sector, que lamentam que tutela não garanta estabilidade. “É chicotear um cavalo já morto”, resume em jeito de ilustração o economista Miguel Gouveia, da Católica Lisbon School of Business and Economics.
No orçamento para 2015 o Governo deixa cair o acordo que tem com a indústria farmacêutica para reduzir a despesa pública com medicamentos em 160 milhões de euros e substitui-o por uma taxa que é aplicada directamente às vendas dos laboratórios. No documento explica-se apenas que esta contribuição tem “por objectivo a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS) na vertente dos gastos com medicamentos” e que não deverá ser igual para todos os fármacos, variando entre os 0,5 e os 15%.
A criação desta taxa chegou a estar em cima da mesa neste ano, mas a Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma) e a tutela mantiveram um acordo que já vigorou noutros anos e que passa por os laboratórios contribuírem com um valor pré-estabelecido para o equilíbrio das contas do SNS. O acordo para 2014, assinado só em Setembro, pode ficar em risco com o avanço para esta nova contribuição.
O presidente da Apifarma, João Almeida Lopes, não quis comentar a medida. Mas o Público apurou junto de fontes do sector que a indústria recebeu a nova taxa com incómodo, ainda que acredite que esta medida (por carecer de legislação posterior) seja uma forma de em 2015 alcançar um novo acordo com os laboratórios com um valor superior ao deste ano. Já o presidente da Associação Nacional de Farmácias (ANF), Paulo Duarte, remeteu eventuais reacções para depois de uma leitura mais atenta do documento.
Miguel Gouveia, por seu lado, admite que a área do medicamento tinha margem de manobra para a redução de preços a que assistimos desde 2011. Mas diz que se atingiu um “limite” e defende que “o Ministério da Saúde parece só saber um mesmo truque” quando deveria apostar numa verdadeira reforma hospitalar.
A principal preocupação do bastonário da Ordem dos Médicos, à semelhança de Miguel Gouveia, está no “impacto negativo no acesso dos doentes aos medicamentos” depois de vários anos de cortes. “A indústria tem sido causticada com o mesmo tipo de medidas em todos os orçamentos e que são medidas que não vemos aplicadas a outros sectores, como o da alimentação”, sublinhou José Manuel Silva, em referência à taxa sobre os chamados alimentos nocivos (ricos em sal, açúcar e gordura) que estava prevista no orçamento de 2014 e que cai no do próximo ano. O médico entende que “o acesso à inovação terapêutica fica ainda mais em risco” e critica o Estado por “querer usufruir da inovação que os outros produzem a baixo custo”.
Para Miguel Gouveia é imperativo ter em consideração a degradação a que se tem assistido nas farmácias, contrapondo que neste momento já não se estão a taxar as chamadas “rendas”. O economista teme que a medida se traduza em mais falhas de medicamentos nas prateleiras das farmácias, tanto por o mercado português não ser interessante como pela via da exportação para países em que os fármacos são vendidos a preços mais elevados.
Preocupações semelhantes são manifestadas pela presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares. Marta Temido receia “os efeitos e a instabilidade” que a nova taxa para as farmacêuticas possa trazer aos hospitais, lamentando que os administradores nunca consigam orçamentar as despesas de recursos humanos e com medicamentos “pelas mudanças constantes e ausência de políticas estáveis”.
A representante dos administradores hospitalares afirma que o reforço orçamental já estava implícito nas regras dos contratos-programa dos hospitais para o próximo ano e que permitiam que a despesa crescesse em alguns casos. De todas as formas, considera que o reforço de 154 milhões de euros “é uma boa notícia, para que as unidades retomem um ritmo de reposição, ainda que não de crescimento” dos serviços prestados. Ainda assim, Marta Temido diz que “é difícil antever se esta verba vai ser suficiente para resolver a dívida acumulada dos hospitais” aos fornecedores, que em Agosto ainda estava nos 1000 milhões de euros. A administradora considera que resolver os pagamentos com orçamentos rectificativos ao longo não pode continuar a ser a solução, e admite que as negociações com a indústria podem ser afectadas pela taxa.
No que diz respeito a outras medidas do orçamento, José Manuel Silva resume as políticas para o sector da saúde como “um conjunto de slogans de marketing”, defendendo que é preciso esperar por clarificações da tutela sobre vários pontos. O bastonário refere que o documento recupera temas “quentes” junto da opinião pública, como a mobilidade dos médicos, mas sem serem especificados os incentivos a que terão direito. Por outro lado, ainda que apoie a redução das taxas moderadoras (que para os cuidados nos hospitais em 2015 vão regressar aos valores de 2013), o médico considera a descida “de cêntimos ridícula”, acrescentando que o ministro deveria ter feito “uma redução que se veja”.