Sensibilidades e expressões

Os ‘estigmas’ na pessoa com dor

Atualizado: 
30/09/2020 - 15:11
A dor, ou o que é entendido como “dor”, manifesta-se diferentemente nas infindas relações entre os indivíduos e o todo da sociedade. As formas de sentir e expressar a dor são regidas por códigos culturais e como factor humano, constitui-se a partir dos significados conferidos pela colectividade, a qual sanciona as formas de manifestação desses sentimentos.
Pessoas com dor

Embora singular e única para quem a sente, as dores dos “estigmas” inserem-se num universo de referências religiosas e simbólicas restritas. Neste caso, o estigmatizado, ou num sentido lato, o próprio doente, possui um modo específico de manifestar a sua dor. Nos estigmas evidenciam-se, portanto, os profundos laços da fé, das crenças e da devoção nas dores do próprio indivíduo.

De entre as múltiplas definições para o conceito de “dor” referidas por Hellman, a título de exemplo, entre outros, pode depreender-se como um conjunto de sensações desagradáveis, localizadas em qualquer parte do organismo humano. A dor actua e é reconhecível como um sinal de alarme, ou que adverte para um determinado perigo, pretendendo-se evitá-lo. A dor deve ser pensada como uma experiência individual e subjectiva, mas que pode ser entendida não só em termos de danos físicos, mas também como uma vivência emocional real ou sentida, de facto. A percepção da dor é, não obstante, aproximadamente idêntica em todas as pessoas.

No entanto, como é compreensível, o grau de reacção emocional varia consideravelmente de indivíduo para indivíduo e depende de muitas circunstâncias e condicionantes variáveis, entre as quais se destacam os aspectos da personalidade e o cômputo das experiências anteriores. Por conseguinte, a dor reveste-se de uma experiência psicofisiológica, pois envolve factores psicológicos e emocionais que podem alterar a sensação da dor ou, em última instância, ser os únicos causadores da dor sentida.

No sentir intrínseco do factor “dor” existe sempre um componente psicológico: ressentimento, depressão, ansiedade, carência de afecto [características frequentes em pacientes com dor crónica]. Por outro lado, a dor psicogénica, na opinião de A. Barbosa, p. ex., pode originar-se em consequência de uma disfunção fisiológica induzida emocionalmente, devido à qual se excitam as terminações nervosas da dor. Pode ainda ser do tipo alucinatório, ou seja, onde não existe qualquer causa orgânica que a justifique – tem a sua origem na mente, mas é experienciada no corpo.

Quando a dor é crónica, deixa de ser um sintoma de algo sensorial para passar a ser a doença, em si mesma. A dor é causada por uma perturbação física, no que se diferencia de outras emoções, como a alegria, a culpa, o remorso, o amor. É neste ponto que lançamos a debate a questão dos estigmas, um fenómeno escondido dos ambientes religiosos, mas com manifestações crescentes na nossa actualidade.

E que tipologias de dores se referem os estigmas? Será qualquer dor um estigma? A doença é um sinónimo de estigma, per si? A dor necessita de uma representação sociocultural? Pertencem os estigmas, em sentido restrito, aos fenómenos religiosos dos nossos tempos? Questões infindas, mas pautadas pelas certezas etnocêntricas europeias, e que mais não são do que alertas para uma questão quase esquecida nos domínios da compreensão da dor.

Problematização/Desenvolvimento

Para uma sucinta definição do conceito de «estigma» [do grego: stígma, stigmatós, “marca de ferro em brasa”, pelo latinismo stigma, -àtis, “estigma; ferrete”] refiram-se algumas das suas conotações linguísticas: pode significar uma marca desonrosa feita com um ferro em brasa ou uma cicatriz, um ferrão ou ferrete, para não referir os termos análogos em Botânica ou na Zoologia. Todavia, interessa-nos discorrer um pouco sobre o polémico tema dos “estigmas”: as feridas nas mãos, nos pés e no peito, semelhantes às cinco chagas de Cristo crucificado, uma das imagéticas dominantes do Cristianismo. Mas convém não esquecer que a própria doença é, por inerência, um estigma, como é tantas vezes aludida, inclusive na comunidade médica.

Do prisma sociológico, o conceito geral de “estigma” refere-se quase sempre ao significado que Erving Goffman [1922-1982] lhe atribui na obra Stigma – Notes on the Management of Spoiled Identity [1963]. Na Antiguidade Clássica, a designação de “estigma” designava todos os “sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou de mau acerca do estatuto moral de quem os apresentava”: tratava-se de marcas corporais, efectuadas com cortes ou com o fogo, que identificavam imediatamente um escravo, um proscrito ou um criminoso, por exemplo. Numa outra linha, Michel Foucault refere precisamente as atribulações dos estigmatizados sociais em Vigiar e Punir [1975].

Por conseguinte, Goffman distingue três tipos de “estigmas”: as deformações físicas [deficiências motoras, auditivas, visuais, desfigurações do rosto, etc.]; os desvios de carácter [distúrbios mentais, os vícios, toxicodependências, doenças associadas ao comportamento sexual, a reclusão prisional, etc.] e os estigmas tribais [relacionados com a pertença a uma raça, nação ou religião]. Todos esses estigmas, obviamente, são causadores de “dor”.

Ao invés, o conceito actual de “estigma” tornou-se mais amplo e de difícil discernimento. Considera-se “estigmatizante” qualquer característica, não necessariamente física ou visível, que não se harmoniza com o quadro de expectativas sociais acerca de um determinado indivíduo. Todas as sociedades definem determinadas exigências acerca dos atributos considerados naturais, normais e comuns do ser humano. O indivíduo estigmatizado é aquele cuja identidade social real inclui um qualquer atributo que frustra as expectativas da normalidade. Tudo o que é alheio à norma, é passível de ser, ipso facto, um “estigma”.

De acordo com as ópticas sociais e também do ponto de vista da Medicina, interessará, principalmente, compreender as relações que se estabelecem entre os elementos “estigmatizados” e os indivíduos ditos “normais”. Os contactos sociais com o portador de um estigma tendem a levar à insegurança e dificuldades múltiplas dos “normais” – por exemplo: não saber como reagir; se olhar ou não directamente para o defeito visível; se auxiliar ou não essa pessoa; se contar ou não uma anedota acerca desse “tipo” de pessoa; sem esquecer tantas outras questões e ambiguidades.

Qualquer que seja a conduta adoptada por ambas as partes, a sensação de que o outro não consegue entender as diferenças latentes entre si, será uma constante. Esta é uma das razões que levam a que os indivíduos estigmatizados desenvolvam estratégias de encobrimento, de forma a garantir ao máximo uma vida normal. Será ainda esse o caso extremo dos “verdadeiros estigmatizados”, uma temática deveras polémica sobre os “estigmas” e que envolve a Igreja Católica Romana.

Sendo um fenómeno raro e desde sempre conotado com logros e embustes, razão pela qual a própria Igreja sempre encarou com extrema cautela, os estigmas são cada um dos cinco sinais que surgem no corpo de um crente, ou não, exactamente nos mesmos pontos onde a tradição refere a crucificação de Jesus Cristo, isto é, nos pés, nos punhos, tornozelos e no tórax, reproduzindo as cinco chagas de Jesus e as dores do martírio de Deus.

De acordo com a própria História da Igreja, o primeiro estigmatizado teria sido São Francisco de Assis [1182-1226], sendo que as suas marcas perduraram por algum tempo. Inspirado por este peculiar acontecimento, desde então o fenómeno dos “estigmas” já se terá manifestado em largas centenas de indivíduos e em diferentes regiões do mundo. Alguns cientistas colocam a hipótese dos estigmatizados usarem vários processos e substâncias para produzirem as suas chagas, o que tem ludibriado muitos crentes. Obviamente que não existe nenhum fundamento científico para a ocorrência destes estigmas e tendo em conta que os casos registados ao longo da História não foram provados cientificamente ou submetidos a um escrutínio científico, não podem ser considerados verosímeis.

Tanto os crentes como os não-crentes consideram os indivíduos estigmatizados como pessoas de fé extraordinária, que possuem uma conduta ética irrepreensível [defensória das “virtudes cardeais”, segundo os dogmas católicos], uma profunda adoração a Cristo e uma convicção profundíssima nas chagas de Jesus Cristo. Trata-se de um símbolo máximo de honra transcendental e que os fazem aproximar da misericórdia de Deus, a tal ponto que as chagas serão como um sinal de reconhecimento por tais méritos. Desse ponto de vista, a dor do estigma é, simultaneamente, uma bênção.

Embora não consensuais, as controvérsias em torno dos estigmas levantam múltiplas questões de natureza médica, social, psiquiátrica, religiosa, cultural, entre outras tantas perspectivas: serão os estigmas provocados pelo Criador? Ou somente uma manifestação patológica da mente do crente fervoroso? Serão fruto de acções que denunciam a crença humana, em detrimento da intervenção divina? Serão uma paranóia extrema do indivíduo? Uma farsa, no fim de contas?

O primeiro estigmatizado foi, segundo rezam as crónicas históricas, S. Francisco de Assis e viveu entre os séculos XII e XIII. Porquê só nestas datas? Como é que não existem relatos de estigmatizados anteriores a essa data? Até ao século XIII as representações da crucificação mostravam um Cristo sorridente. Cristo, pregado na cruz, olhava para as pessoas e sorria. É nestes séculos que se dá um alteração da representação artística de Cristo na cruz. Desaparece o olhar frontal e o sorriso amigável e surge a dor, a tristeza, representada por uma pessoa de cabeça caída. Este é o aspecto histórico que nos permite associar o aparecimento de estigmas com representações de dor do Cristo crucificado. É lógico que nos finais da Idade Média, marcada pelas fomes, pestes e guerras, onde as Ars Moriendi e os seus cortejos de horrores imperavam, o mundo devia ser representado com um local de imensa dor.

Conclusões

Sendo uma matéria tão vasta, é sabido que o surgimento dos estigmas está intrinsecamente relacionado com a representação da dor na arte religiosa. Existe uma correlação entre o aparecimento dos estigmas e as representações artísticas a que o crente se encontra sujeito, assim como existem contradições entre o aparecimento de estigmas e as descrições bíblicas e históricas da morte de Cristo. Apelando à lógica e à probidade, não existe qualquer fundamento rigoroso para provar a veracidade dos estigmas, baseado em factos científicos.

Então, porque persistem em existir? Porque causam dores de natureza física, mas, sobretudo, espiritual, emocional e psíquica, não só para o doente como para o profissional que o acolhe? Será o profissional de saúde capaz de lidar com esta situação sem fazer um “juízo de valor”? De entre as inúmeras questões que poderíamos colocar, na verdade todas as respostas continuam em aberto, quase com tantas incertezas como no século XIII…

Bibliografia Especializada

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Autor: 
Susana Cristina Silvestre Alexandre - Enfermeira Graduada no Serviço de Consultas Externas e Unidade de Tratamento de Dor da ULS da Guarda E.P.E. – Hospital Sousa Martins
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico e/ou Farmacêutico.
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