Novos critérios de colheira de órgãos podem ajudar a salvar recém-nascidos
A transplantação é um procedimento clínico de elevado sucesso que permite evitar a morte prematura, recuperar a saúde e devolver qualidade de vida ao recetor, sendo Portugal um dos países com mais elevadas taxas de transplantação por mil habitantes, a nível mundial. Não obstante, a escassez de órgãos para transplante persiste como o maior entrave para salvar vidas em falência de órgãos.
No que se refere à colheita de órgãos em cadáver, o CNECV explica, "a Lei n.º 12/93, de 22 de abril adotou o sistema de opt out, isto é, em que todos os cidadãos são potenciais dadores após a morte, salvo oposição expressa, devidamente registada. Tal permitiu um aumento muito significativo do número de órgãos disponíveis em relação ao anterior sistema de opt in, em que os cidadãos tinham de manifestar formalmente a disponibilidade como dadores, uma vez falecidos".
"Os progressos científicos e técnicos, bem como a evolução da sociedade exigem hoje uma atualização legislativa, nomeadamente de acordo com o previsto na Declaração de Maastricht (de 1995, revista em 2013, sobre dadores em paragem cardiocirculatória), e em específico no que se refere à inclusão das designadas categorias III (paragem cardiocirculatória controlada) e IV (paragem cardiocirculatória após ou durante o diagnóstico de morte cerebral) que permitam a colheita em situações em que o diagnóstico de morte cerebral não é possível. Esta é a situação em que alguns doentes se podem encontrar e também, por exemplo, os recém-nascidos anencéfalos, em que se verifica a ausência de parte ou na forma mais grave da totalidade do cérebro, parte superior do crânio e couro cabeludo", salienta o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
De acordo com esta entidade, Portugal é dos poucos países da União Europeia que não admite como dadores quem se encontre na categoria III e IV da Declaração de Maastricht. "A alteração da legislação no sentido de permitir, como dadores, pessoas com morte declarada por paragem cardiocirculatória irreversível, correspondendo à adoção destas duas categorias, potencializaria uma maior disponibilidade de órgãos para transplante, uma possibilidade acrescida de salvar vidas". Neste âmbito, o Conselho sublinha ser essencial respeitar a dignidade e os direitos de todos os dadores.
A presente reflexão do CNECV e o parecer agora aprovado tiveram por base o contacto efetuado por profissionais de saúde no ativo nos hospitais portugueses, em novembro de 2023, relativo à possibilidade de colheita de órgãos em recém-nascidos anencéfalos para fins de transplantação. A anencefalia é uma ocorrência rara, mas de singular sensibilidade, que o CNECV entendeu tomar como oportunidade para, através de um parecer de iniciativa própria, rever de uma forma mais ampla o tema da transplantação, nas condições para a colheita de órgãos de origem humana, especificamente nos casos de recém-nascidos com prognóstico muito grave e/ou fatal no período neonatal.
Assim, no início deste ano, o Conselho começou a trabalhar esta problemática, terminando a discussão antes do verão. Desde então e até hoje, procurou juntar mais informações às audições efetuadas, em maio de 2024, a diversos peritos nas áreas da pediatria e da transplantação.
No seu parecer, o CNECV afirma que a dignidade de todos os recém-nascidos é independente de quaisquer características físicas, devendo ser respeitados nos seus direitos e decorrendo da sua particular vulnerabilidade um especial dever de cuidado e proteção.
"Nos recém-nascidos com doença grave no período neonatal, submetidos a medidas terapêuticas que passam a afigurar-se desproporcionadas perante a evolução para prognóstico fatal, os profissionais de saúde devem informar os pais sobre a possibilidade de doação, para que possam decidir sobre a manutenção de medidas que, já não sendo terapêuticas, preservam os órgãos para colheita", escreve em comunicado.
Particularmente quanto aos casos clínicos de anencefalia, afiguram-se três momentos, explica:
- "no momento de diagnóstico, os profissionais de saúde proporcionem informação clara e adequada acerca do prognóstico fetal e neonatal, cabendo à mulher, no exercício da sua autonomia, decidir sobre a terminação da gravidez ou a sua prossecução, nos termos e prazos legais; nesta fase é prematuro discutir a doação de órgãos que, além de ser uma possibilidade remota, poderia constituir uma forma de influencia indevida sobre a decisão da mulher;
- caso a gravidez prossiga até ao nascimento, a possibilidade de doação e a informação das respetivas condições e procedimentos, incluindo a incerteza do seu sucesso, deve ser formulada pelos profissionais de saúde, permitindo aos progenitores manifestar o seu assentimento ou dissentimento e, neste último caso, preparar a inscrição no registo de não dador;
- caso haja condições para a colheita e posterior transplantação e não haja dissentimento dos progenitores para a doação, deverá ser prestada a informação necessária à decisão dos progenitores sobre a possibilidade de iniciar, em vida do RN, medidas destinadas a preservar a qualidade dos órgãos, respeitando o princípio da não maleficência e sempre sob analgesia adequada".
De acordo com o CNECV, qualquer que seja a decisão dos pais, "deve-lhes ser disponibilizado apoio psicológico ao longo de todo o processo, incluindo na vivência do luto".
O CNECV defende ainda uma clara separação e independência entre a equipa médica de verificação de morte e a da transplantação, por forma a evitar quaisquer conflitos de interesse. Enfatiza também a necessidade de formação adequada para os profissionais de saúde na comunicação de más notícias e na gestão do processo de doação com os progenitores. O papel das comissões de ética em ambiente hospitalar é destacado na mediação das decisões difíceis.