Aumento do número de profissionais no SNS apenas permitiu recuperar atividade assistencial
A análise dos autores incide sobre os dados recolhidos na última década (2011-2022) e verifica, entre outros parâmetros, que na prestação de cuidados de saúde, o aumento do número de profissionais, sobretudo desde 2015, foi anulado pelo aumento do número de profissionais que trabalham em tempo parcial e pelas alterações aos horários de trabalho (regresso às 35 horas). Tal revela que a capacidade assistencial do Serviço Nacional de Saúde (SNS) depende, entre outros fatores, do número de horas trabalhadas e não do número de profissionais. Concluindo assim que ‘o esforço financeiro realizado foi canalizado para a recuperação e não para a expansão da capacidade’.
Embora o número de profissionais de saúde em Portugal tenha crescido de forma contínua (entre dezembro de 2014 e julho de 2022, verificou-se um aumento global de 29%: médicos internos +35%, médicos especialistas +25% e enfermeiros +35%), o aumento da procura por cuidados de saúde e a sofisticação técnica esbatem os ganhos obtidos pelo aumento do número de profissionais de saúde. O relatório revela ainda que Portugal apresenta fortes desequilíbrios na força de trabalho em saúde, o que acentua a dificuldade para fazer face às necessidades de uma população particularmente envelhecida, com elevada prevalência de doenças crónicas e hábitos de vida pouco saudáveis.
Alertando para as limitações que impedem uma justa comparação, os autores lembram, ainda assim, que Portugal é o país da OCDE com maior número de médicos por mil habitantes (5,5 médicos por cada mil habitantes), mas surge entre os dez países com menos enfermeiros (7,1 enfermeiros por mil habitantes) e é mesmo o país da OCDE com o rácio de enfermeiros por médico mais baixo (1,3 enfermeiros por médico, em contraposição à média dos restantes países que apresentam um rácio de 2,7 enfermeiros por cada médico).
Envelhecimento dos profissionais de saúde
O envelhecimento da população e dos profissionais de saúde foi igualmente alvo de análise no presente relatório. Os dados mais atuais (relativos a dezembro de 2021) indicam que cerca de um quarto dos médicos (24%) inscritos na Ordem tinha mais de 65 anos, o que faz antecipar uma vaga de aposentações nos próximos anos, cenário que atingirá o seu pico na presente década (2020–2030), com um expectável volume médio de aposentações anuais superior a 450. O envelhecimento dos profissionais de saúde - que no caso dos enfermeiros é menos expressivo – afeta diretamente o planeamento dos recursos humanos em saúde, uma vez que a proporção de médicos envelhecidos não só reduz o número de profissionais disponíveis para trabalhar em período noturno ou na urgência, como permite antever, para a presente década, a aposentação de cerca de 5 mil médicos. ‘O planeamento atempado dessas aposentações é fundamental para minimizar disrupções no normal funcionamento dos cuidados de saúde’ adiantam os investigadores, frisando o impacto destas saídas ao nível, por exemplo, da manutenção da capacidade formativa no SNS.
A fotografia dos recursos humanos no SNS e as estimativas futuras existentes reforçam a necessidade de outro tipo de abordagem para fazer face aos problemas da escassez de alguns profissionais, das restrições orçamentais e das necessidades crescentes e complexas da população. A resolução dos desafios existentes nos recursos humanos em saúde em Portugal passa, segundo os investigadores, por ‘(…) uma diferente capacidade de gestão para estabelecer, por um lado, condições de atratividade do SNS (…) e, por outro lado, aproveitar as potencialidades de reorganização do trabalho nas unidades de saúde, propiciadas quer pela evolução das competências dos vários grupos profissionais da saúde quer pelo desenvolvimento tecnológico, incluindo a transformação digital, que permite o desempenho de algumas tarefas por meios tecnológicos.’.
Profissionais de saúde do SNS exaustos e com menos poder de compra
Na análise às remunerações o relatório conclui que a deterioração da atratividade do SNS tem vindo também a ser reforçada pela diminuição da competitividade das condições remuneratórias, fruto da evolução negativa das mesmas. Ao passo que o ganho médio nacional subiu 23% entre 2011 e 2022, no caso dos médicos observou-se um decréscimo de 5% (em parte explicado pelas aposentações) e no caso dos enfermeiros o ganho médio subiu 14%, no mesmo período. A comparação entre a evolução das remunerações reais e a evolução do poder de compra, evidencia que, em 2022, os médicos perderam 18% do poder de compra face a 2011, e os enfermeiros perderam 3% (em média, os trabalhadores nacionais viram o seu poder de compra subir 6% no mesmo período, apesar da quebra significativa em 2022, face ao aumento da inflação). Os autores do estudo referem que o período de recuperação registado antes da pandemia ‘não foi suficiente para recuperar significativamente as dificuldades sentidas durante a crise financeira e para fazer face à dinâmica recente de preços’.
O recurso a suplementos remuneratórios utilizado para atenuar as perdas de poder de compra acentua a pressão da carga de trabalho e complexifica a gestão das unidades de cuidados de saúde. Também o crescimento do setor privado, com a consequente possibilidade de duplo emprego para complemento dos rendimentos, cria uma pressão adicional ao SNS, complexificando a gestão de recursos humanos, e coloca desafios sobre a evolução da remuneração dos profissionais de saúde no setor público, enquanto fator de atratividade dos profissionais.
Condicionantes à evolução dos recursos humanos em saúde em Portugal
O presente relatório destaca como fortes condicionantes à evolução do cenários dos recursos humanos em saúde em Portugal três períodos negativos sucessivos que incidiram sobre os profissionais de saúde e que resultaram na perda de rendimento real e na degradação das condições de trabalho: o programa de ajustamento financeiro e das contas públicas (2011-2014) - reduções salariais, aumento dos horários de trabalho e congelamento do orçamento para o SNS diminuíram significativamente as perspetivas de evolução dos profissionais de saúde, acentuando o desgaste face ao crescimento contínuo da procura por cuidados de saúde; o período seguinte de reversão de medidas (2015-2019) – a diminuição do horário de trabalho associada à mesma procura por cuidados de saúde teve que ser satisfeita por um número menor de horas de trabalho o que se traduz em contratações utilizadas para recuperar a capacidade de resposta e não o seu reforço; e a pandemia da Covid-19 (2020-2021) - aumento drástico da carga de trabalho e desgaste relacionado com o trabalho na ‘linha da frente’ da pandemia que se somou aos fatores de pressão que se sentiam desde a crise financeira.
‘A falta de atratividade do Serviço Nacional de Saúde como local de trabalho decorreu mais dos três choques sucessivos do que da falta de atenção (que existiu) aos efeitos da demografia’, concluem os autores, salientando a necessidade de mudanças para lá da abertura de vagas para formação e da abertura de concursos de recrutamento - mudanças ao nível da gestão, com a criação de uma estratégia ativa para desenvolvimento profissional no SNS, e da reorganização do trabalho.