Lei da Eutanásia

APCP alerta que ainda há muito por fazer para uma escolha livre

A Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP) considera que não é aceitável que a urgência em aprovar a Lei da Eutanásia ultrapasse a urgência em resolver problemas graves que o país vive no acesso a cuidados de saúde adequados para todos, e de condições para a vivência digna de um processo de doença que determina sofrimento. “Não falamos apenas da enorme lacuna no investimento sério e consequente ao nível dos cuidados paliativos, mas também ao nível de todos os cuidados de saúde e sociais”, refere Catarina Pazes, presidente da APCP.

A lei recentemente votada na assembleia da república visa dar ao doente com “sofrimento intolerável” que decorra de “uma doença grave”, a possibilidade de escolher antecipar a data da sua morte. Para Catarina Pazes, “se falamos de um doente em sofrimento intolerável por doença grave, que pede, reiteradamente, a antecipação da sua morte, e não apresentamos medidas de alívio e garantia de que se esgotam as possibilidades de alívio desse sofrimento, então não estamos a salvaguardar a liberdade. É preciso clarificar que antecipar a morte não retira ao doente a necessidade de cuidados de saúde adequados”. Evidenciam-se duas grandes preocupações: o facto de o projeto de lei apresentar a situação de “doença grave” e deixar de implicar a condição de letalidade, o que muito alarga as possibilidades e dificulta a definição das situações a incluir; e o facto de, mediante o pedido de eutanásia, não estar prevista a avaliação e intervenção de uma equipa de cuidados paliativos, tratando-se da especialidade clínica que detém as competências mais avançadas na abordagem de sofrimento complexo.

Continua a ser muito preocupante que um grande número de deputados pareça não reconhecer a necessidade óbvia da intervenção da medicina paliativa no caso de sofrimento complexo decorrente de doença. A prova disso é que a possibilidade de antecipar a morte é apresentada como uma alternativa aos cuidados paliativos. Estes surgem, no âmbito da proposta de lei, como uma opção e não como uma garantia ao doente em sofrimento. Urge clarificar que a referenciação de um doente para cuidados paliativos decorre de uma indicação clínica, tal como a referenciação de um doente em situação crítica para cuidados intensivos. E isso é algo que precisa estar claro para todos.

Reiteramos que todas as pessoas devem ter liberdade de escolha e essa liberdade implica obrigatoriamente um acompanhamento de qualidade. A ausência deste, pode servir de “empurrão” para uma solução de exceção, como é a eutanásia.

Por isso, a APCP considera que os profissionais de saúde, nomeadamente os que se dedicam diariamente a garantir cuidados a doentes com sofrimento decorrente de doença avançada, devem ser ouvidos e devem ter uma participação ativa em todo este processo, já que o seu contributo servirá para uma discussão séria e responsável sobre propostas tão profundas que dizem respeito a doentes e profissionais.

Este alerta não é dado apenas pelos paliativistas, mas por todos os profissionais que se dedicam a contribuir para mais e melhores cuidados que visam prevenir e tratar sofrimento de pessoas doentes, dependentes, vulneráveis, tal como ficou claro no ciclo de debates ocorrido em 14 de maio de 2022 e que juntou mais de 20 entidades (sociedades científicas, profissionais e sociais) refletindo sobre os cuidados garantidos a doentes com doença avançada – https://apcp.com.pt/ciclo-de-debates.

Face ao exposto, a APCP exige que o estado garanta as condições para que se cumpram os direitos plasmados na legislação sobre cuidados de saúde e respostas sociais (lei 52/2012, de 5 de setembro e Lei 31/2019, de 18 de junho) e que  o acesso a cuidados paliativos esteja garantido a todos, independentemente do contexto, da idade, da doença, do nível de educação e do local onde se vive. 

Por outro lado, que a obstinação terapêutica, assumida na lei portuguesa como má prática clínica (e punível nos termos da legislação geral e deontológica), seja efetivamente combatida através de medidas concretas, nomeadamente ao nível da formação e treino na comunicação e processos de tomada de decisão ética por parte dos profissionais de saúde e que o doente possa, de facto, participar nas decisões ao longo do seu processo de doença e possa exercer o seu direito ao consentimento informado. As intervenções às quais o doente é submetido devem estar enquadradas na boa prática clínica e na vontade do doente. 

Exige ainda que os profissionais de saúde possam contar com condições de trabalho adequadas às funções por forma a garantir a qualidade dos cuidados que prestam e que todos os doentes com sofrimento, vulnerabilidade ou dependência vejam as suas necessidades a serem adequadamente respondidas, independentemente da sua vontade relativamente ao momento e à forma da sua morte.

A Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos continuará ao serviço dos doentes e dos profissionais que se dedicam a esta área clínica. Quer contribuir para uma sociedade mais participante e para a literacia nesta área. Mantém-se, por isso, ao dispor para colaborar com quem tem responsabilidade de decisão a nível nacional, para o desenvolvimento e construção de respostas justas, humanizadas, rigorosas, que sejam científica e eticamente alicerçadas.

Fonte: 
Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP)
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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