Na Bélgica o debate é sobre se o cansaço da vida é motivo

Enquanto em Portugal se discutem eventuais alterações legais para permitir a eutanásia, tendo hoje sido entregue na Assembleia da República uma petição pela despenalização da morte assistida com mais de 8.300 assinaturas, o debate na sociedade belga em torno desta prática, legal desde 2002, encontra-se num patamar distinto, com os tribunais a serem chamados a pronunciar-se sobre o sofrimento existencial.
Do Grupo de Investigação sobre Cuidados em Final de Vida, que junta as universidades de Gent e a Universidade Livre de Bruxelas, Kasper Raus explicou que o sofrimento psicológico insuportável resultante de uma doença ou acidente pode ser alegado. Mas “as percentagens são baixas”, aponta à agência Lusa.
“A verdadeira questão é o sofrimento existencial sem uma condição diagnosticável, o que muitas vezes significa cansaço da vida” e são altas as hipóteses de envolverem os mais idosos, comenta o especialista em questões de ética à Lusa, para explicar as divergências na Bélgica: "alguns advogados admitem que as alegações de artrite incurável, redução da audição ou da visão enquadram-se na atual lei, outros discordam fortemente e garantem que esse não é o espírito da lei”.
“Muito recentemente, a Comissão Federal belga de Controlo e Avaliação da Eutanásia apresentou, pela primeira vez, um caso às autoridades judiciais. Este caso, que está agora a ser investigado, relaciona-se com cansaço da vida. O resultado vai clarificar a posição dos tribunais nestas questões, mas é impossível prever o que vai acontecer”, diz.
Em 2014, a prática de eutanásia na Bélgica foi alargada a menores, embora, segundo a comissão federal, nenhum caso tenha sido registado.
Nos últimos dados disponíveis, referentes a 2012-2013, a comissão recebeu 3.239 de pedidos de eutanásia, numa proporção média de 1,5% de todos os falecimentos no país.
Outro elemento do grupo de especialistas das universidades de Bruxelas e de Gent, Kenneth Chambaere, sublinha que na Bélgica “não é permitido tudo, uma vez que há inúmeros requerimentos necessários para elegibilidade, assim como requisitos processuais a serem cumpridos.
O aumento no número de pedidos submetidos à comissão federal é notada por Chambaere, sobretudo, a partir de 2007, por, provavelmente, ter sido necessário os “médicos acostumarem-se à possibilidade” e os pacientes “considerarem a opção”.
“Houve também uma extensão da prática além de pacientes com cancro terminal e a atenção dada pelos órgãos de comunicação social, provavelmente, também desempenhou um papel”, refere.
“Atualmente, cerca de 70% dos pedidos são atendidos”, informa Raus.
A lei belga, bem como a diferença de números das declarações apresentadas em neerlandês (2.610/80%) e em francês (629/20%), entre 2012 e 2013, podem ser explicados pela “cultura e secularização”, diz Chambaere, notando a que os “direitos dos pacientes de autonomia e autodeterminação são tidos em consideração” sobretudo na Flandres (região flamenga)”.
Kasper Raus não relaciona a religião com a aceitação da eutanásia na Bélgica, uma vez que “inquéritos mostram que o país é muito secularizado”.
“Talvez haja uma cultura de crença na autonomia dos pacientes”, admite.
Sem estudos realizados na Valónia (região francófona) para fazer análises, o especialista informa que uma investigação conduzida em Bruxelas sugeriu que os médicos francófonos “estavam menos dispostos a praticar eutanásia” e mais a realizar uma sedação paliativa, mas a explicação "apenas pode ser especulada”.