Uma visita pelas dependências
“Os grandes problemas de saúde em relação a substâncias psicoactivas continuam a ser ligados a substâncias lícitas: o álcool e a nicotina. Em relação às substâncias ilícitas a tendência tem sido o crescente consumo da cannabis, nomeadamente cannabinoides sintéticos, mais potentes, à semelhança da maior parte dos países ocidentais”, refere o médico psiquiatra João Curto, também presidente da Associação Portuguesa de Adictologia com quem o Atlas da Saúde esteve à conversa.
Convém recordar que, “a adição é uma doença do cérebro, crónica com tendência a recaídas, que se traduz no consumo compulsivo da substância apesar das consequências negativas para o próprio ou terceiros”, refere o especialista esclarecendo que, “a dependência nem sempre se constitui como adição”.
Na adição, “há uma incapacidade em controlar este comportamento da procura e consumo a todo o custo e que resulta, a maior parte das vezes, na dificuldade em cumprir com as suas responsabilidades familiares, sociais, profissionais ou académicas e, algumas vezes, dependendo da substância, tolerância e privação se for interrompido bruscamente o consumo”.
Porém explica João Curto, “a dependência física pode acontecer com o uso continuado de muitas substâncias, incluindo medicamentos, o que só por si não constitui adição, apesar da dependência acompanhar frequentemente a adição que é uma doença complexa”.
Os vários estudos realizados em Portugal revelam que a cannabis é a substância ilegal mais consumida pela população em geral com idades entre os 15-65 anos, com especial incidência nos grupos etários mais jovens. Verifica-se que as prevalências do consumo de cannabis tendem a diminuir na população em geral mais velha, não ocorrendo o mesmo nas populações mais jovens 15-24 anos que têm os maiores consumos de cannabis.
No que respeita a substâncias como os opióides, nomeadamente a heroína, nota-se uma redução do número de novos casos, uma tendência que se vem mantendo desde 2007.
Actualmente, comenta o psiquiatra, “embora não alarmante mas com alguma preocupação, verifica-se a utilização de substâncias estimulantes, a cocaína com ligeiro aumento e algumas substâncias sintéticas, principalmente derivadas das catinonas, com efeitos semelhantes. O mercado das drogas é muito astuto e, por isso, a estratégia é manter o alerta e os serviços de dependências e de adições actuantes”.
Factores de risco das dependências
As adições e os comportamentos aditivos apresentam diversos factores precipitantes, uns internos e outros externos. De entre os externos, “a disponibilidade das substâncias e o ambiente que se frequenta, por exemplo se envolve a convivência da pessoa como a presença de outras pessoas que consomem nomeadamente familiares, entre outros”, refere o presidente. Em relação aos mecanismos internos, João Curto, nota factores como “o desenvolvimento educacional, determinadas características temperamentais, muitas delas hereditárias, e naturalmente a vulnerabilidade biológica, genética, onde os estudos revelam que a influência atinge entre os 40 e 60%, constituindo na realidade o factor mais preponderante porque umas pessoas se tornam aditas e outras não”.
Experiência na intervenção em Portugal
A situação sobre as toxicodependências evoluiu muito, e perante a mudança de padrões de consumo as abordagens e as respostas aos problemas, obviamente, foram sendo adaptadas.
Hoje, segundo João Curto, “já não estamos perante o boom da heroína dos anos 80/90. Estamos com o policonsumidor, a diversão e o consumo rápido em jovens, onde o álcool assume particular relevância, as substâncias psicoactivas emergentes ou o jogo através de um mercado diversificado e de disseminação online, exigindo verdadeiras mudanças nas abordagens e na organização de serviços”.
Actualmente, Portugal tem uma rede pública especializada nas toxicodependências que abrange todo o território, com verdadeira implantação no terreno, e que permitiu o aparecimento de profissionais, de modelos e técnicas diferenciadas que são aplicadas por profissionais em equipas multidisciplinares e de forma integrada, sendo mais fácil um caminho de adaptação.
“A criação destes serviços especializados em adições, quando ainda o preconceito e o estigma sobre as pessoas toxicodependentes eram marca, mesmo nos restantes serviços públicos de saúde, permitiu recuperar cidadania nestas pessoas, tendo mesmo contribuído para que surgisse em 2000 a lei da descriminalização do consumo de drogas, instrumento importante na definição das estratégias seguintes sobre os comportamentos aditivos”, congratula-se o especialista.
Estes serviços especializados coabitam com os cuidados de saúde primários e a saúde mental permitindo que pessoas com risco ou com perturbações aditivas possam ser referenciadas mais atempadamente e com menor risco de dispersão dos doentes.
Para além desta coabitação, João Curto realça também que, “a par dos serviços públicos para os comportamentos aditivos, a sociedade portuguesa beneficiou de outra ‘rede’ constituída por instituições de solidariedade social e outras organizações não governamentais principalmente com programas residenciais e de reinserção social”.
Liberalização, proibição e legislação
“Nem tudo se resolve com legislação, apesar de constituir um forte contributo”, opina o especialista acrescentando que, “é absolutamente necessária uma grande aposta na formação educacional das pessoas onde se inclui informação clara não apenas sobre malefícios, em que é importante a forma como se comunica”, diz o psiquiatra salientando que “é do reconhecimento geral de que as políticas proibitivas, restritivas e punitivas não têm contribuído para a resolução do problema e nalguns casos agravaram determinadas situações”.
Porém no caso da proibição de consumo de bebidas alcoólicas a menores de 18 anos, a sua concretização está de acordo com o conhecimento actual do desenvolvimento biológico do ser humano em que os indivíduos menores de 18 anos não têm ainda a capacidade de metabolização do álcool e mesmo a maturação neuro biológica, cerebral, está em desenvolvimento o que compromete a sua capacidade de decisão e, por isso, João Curto realça “positivamente a sua aplicação, e digo aplicação, pois essa constitui a parte da lei que deve realmente trazer benefícios”.
Para o especialista é diferente falar-se de consumo de cannabis de há 20 anos e nos tempos actuais. “A concentração actual de THC que tem os efeitos psicoactivos da cannabis tem aumentado significativamente (3,98% em 1995 para 12,58% em 2013). Isto significa que os efeitos do consumo podem originar mais facilmente uma adição a esta substância (9% dos consumidores regulares) e que a nível mental se reflectem em alterações a nível da capacidade de aprendizagem, da motivação, da concentração e memorização”, explica acrescentando que também se verificam quadros mais graves como paranóia e psicoses, alterações a nível da coordenação motora interferindo com as capacidades de conduzir e com o aumento de agressividade ou alterações a nível pulmonar com o aparecimento de bronquite crónica. Diferente também é o impacto para a saúde do consumo de cannabis num jovem adolescente e num adulto, nomeadamente se esses consumos são esporádicos ou regulares ao longo do dia.
De referir que em Portugal, e decorrente da lei da descriminalização, o auto consumo e a posse de cannabis para consumo próprio não é sancionado criminalmente. Apenas o tráfico e acções que incentivem ao consumo de outras pessoas são penalizadas. Sobre esta questão João Curto defende que o debate não deve ter em conta apenas aquilo que de negativo este problema revela, uma vez que há experiências com resultados positivos que foram realizadas em vários países. A sociedade e os poderes públicos devem, na opinião do psiquiatra, “ter a sensibilidade necessária para se envolverem neste assunto, e que a comunidade científica consiga a motivação e os recursos necessários para melhorar a investigação”.
A intervenção
“Claro que a grande aposta deve ser a prevenção dado que não temos ainda um tratamento de cura para as dependências e adições, apesar de se ter avançado no conhecimento dos mecanismos patofisiológicos cerebrais subjacentes ao aparecimento da adição”, defende João Curto.
Porém, os avanços no conhecimento das neurociências, nomeadamente sobre as estruturas cerebrais e funções cognitivas que podem ser afectadas pelas adições (por exemplo, a capacidade de decisão e o controlo inibitório) têm permitido “adequar e direccionar melhor as abordagens e os programas de intervenção, incluindo programas de prevenção dirigidos a capacitar os jovens para opções e decisões mais benéficas”.
A implementação da rede de referenciação para o álcool e para as substâncias ilícitas, documento já aprovado pelo governo, cria bases de ligação importantes entre os serviços de saúde permitindo aos profissionais maior facilidade em orientar os utentes para os níveis de cuidados mais consentâneos com a situação de cada um.
No entanto, para iniciar esta articulação João Curto considera fundamental “a formação dos profissionais em matéria de comportamentos aditivos e técnicas de abordagem, e uma boa rede de comunicação a funcionar particularmente a compatibilização dos programas informáticos para a área clínica”.
A Revista Adictologia
Desde a constituição da Associação, em Novembro de 2010, que faz parte dos objectivos a criação de uma revista científica. Em Portugal, a única publicação específica em Adições foi a revista Toxicodependências (Editada pelo ex Instituto da Droga e da Toxicodependência) que deixou de ser editada desde 2012. “Além disso, verificamos que a edição de trabalhos portugueses sobre a matéria é reduzida”, comenta o presidente, sublinhando que, nessa medida, a revista Adictologia “trata-se de um desafio para todos que queiram realizar trabalhos relacionados com as adições, incentivando a criação de artigos, facilitando um espaço onde possam publicar e, ao mesmo tempo, divulgar os conhecimentos entre os profissionais que trabalham directa ou indirectamente nesta área das adições”.
Os objectivos e expectativas para a publicação são os de sedimentar a revista como publicação científica, conseguir estimular os profissionais a aderir a este desafio estimulando a produção de trabalhos, cada vez mais, rigorosos e inovadores e fazer da revista um espaço de partilha de conhecimentos com a maior divulgação possível. Esperamos sinceramente que possa contribuir para um conhecimento mais aprofundado dos comportamentos e doenças aditivas.
A revista estará disponível no site da Associação Portuguesa de Adictologia -www.adictologia.com, uma vez que se trata de uma revista online. Situação que não inviabiliza a possibilidade de um determinado número poder ter uma edição em papel.
Por expressa opção do autor, o texto não respeita o Acordo Ortográfico