Reflexões de um Enfermeiro Aposentado
Sou do tempo em que…
As instalações hospitalares eram de uma pobreza confrangedora: enfermarias enormes, com camas amontoadas, casas de banho insuficientes e sem quaisquer condições sanitárias.
É difícil fazer crer aos mais novos a realização de determinados tipos de intervenção em tais circunstâncias. O que nos faltava em condições e meios supríamos com entrega, disponibilidade, inovação e, sobretudo, humanidade.
Foi nestas circunstâncias que tive as maiores lições da minha vida. Aprendi que um pequeno gesto, como um olá, um bom dia ou um toque pode fazer toda a diferença. Para ser um bom enfermeiro não basta ter os gestos técnicos perfeitos, é necessário ir mais além. É preciso tocar o coração e a sensibilidade daquele que está indefeso nas nossas mãos.
Aprendi também que, as necessidades do doente não se alteram em função das circunstâncias envolventes. É dever, de cada Cidadão em geral, de cada Profissional de Saúde em particular, e muito especificamente do Enfermeiro, lutar para que sejam criadas as condições ótimas para a sua satisfação integral.
Boas instalações e técnicas inovadoras estão aí. Oxalá não se esvaziem de humanidade.
Não havia falta de emprego para os enfermeiros
Todos os enfermeiros tinham emprego. No meu caso comecei a trabalhar 3 dias depois de terminar o curso. E no hospital da minha cidade! Houve ainda alguma incerteza, em determinada altura do final do curso, do local em que iria trabalhar. É que, por essa altura, estava prestes a iniciar-se o Serviço Nacional de Saúde e sabíamos que teríamos que ir iniciar o nosso trabalho nas regiões piloto prioritárias, Guarda, Vila Real ou Castelo Branco. Essa incerteza acabou quando recebemos as cartas com a indicação do local e data em que deveríamos apresentar-nos. A mim calhou-me em sorte o hospital de Vila Real. Este processo foi cancelado, por razões que desconheço, tendo o SNS arrancado apenas em 1979, razão pela qual fiquei no Hospital de Viseu.
Agora, as coisas estão completamente diferente e muito complicadas para os enfermeiros. Apesar de ser notória a falta de enfermeiros nas unidades de saúde, são obrigados a procurar trabalho no estrangeiro. Mais grave ainda, devido à falta de uma carreira, ao agravamento das condições de trabalho e de remuneração, há enfermeiros que deixam os seus empregos para procurar novas oportunidades. Espero que não venhamos, num futuro próximo, a sofrer as consequências…
Já existiam diferendos entre os diferentes atores da prestação de cuidados de saúde, Médicos, Enfermeiros e Técnicos
Um tema que aparece com alguma recorrência na comunicação social é sobre a competência para realizar determinados atos, gerando alguns conflitos entre médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde. Durante o meu percurso profissional surgiram também situações semelhantes. É difícil tomar posição. Mas deixem-me relatar um episódio ocorrido em 1982/3, enquanto trabalhava na Cardiologia/UCIC e tirem as conclusões.
“Turno das 0 ás 8 horas. No hospital, durante a noite, não há técnico de Cardiopneumografia. Existe uma indicação de que deverão ser os enfermeiros da Cardiologia/UCIC a efetuar os eletrocardiogramas na Urgência. Os enfermeiros acham que não têm que o fazer, pois não têm essa competência. Nessa noite é recebida uma chamada da urgência comunicando que há um doente com suspeita de enfarte que necessita de fazer ECG. Em conversa com o colega decidimos que faríamos o ECG se o doente viesse ao serviço. O doente chega. Colocamos os elétrodos. Iniciamos a colheita do ECG: DI, DII, DIII, AVR … Fibrilhação ventricular!! É necessário agir rápido! Não há médico de serviço na Unidade. Corre-se para o carro de emergência. Em poucos segundos preparam-se as pás do desfibrilhador. Colocam-se nos locais proprios para desfibrilhação. Carrega-se o desfibrilhador. Descarrega-se a carga no peito do doente. Suspence…. Deu certo. O doente retoma o ritmo cardíaco. Salvámos um doente. Quem poderá pôr em causa a nossa atuação? Tinhamos ou não competências para o fazer? Eu digo, ainda bem que tomámos esta decisão…
O entendimento da interdisciplinaridade e complementaridade no processo de cuidar era incipiente
O entendimento de que a prestação de cuidados é um trabalho interdisciplinar e complementar é definitivamente uma evidência. No início da minha carreira isso não era bem assim. O enfermeiro era um mero “ajudante do médico”. As mudanças de mentalidades e sobretudo o acréscimo de formação dos enfermeiros assim o permitiu, embora ainda existam profissionais que assim o não entendam.
Nesta perspetiva, o enfermeiro tem grande relevância, pois é o profissional que está sempre presente (ou deveria estar). É o pivot que deve garantir a continuidade dos cuidados. Tem que ser o elo aglutinador. Para isso, as dotações têm que ser as adequadas, o que, tendo em conta as confidências de ex-colegas e das informações veiculadas pela comunicação social, é cada vez mais raro isso acontecer. O doente, nestas condições, é colocado em risco… As razões? Tudo é reportado para o estado de “crise em que vivemos”. Mais me parece ser consequência de cortes cegos de quem não conhece o setor. Os políticos têm que entender que há áreas sensíveis em que não é possível descer abaixo de determinados limites, senão a catástrofe é certa. Em meu entender, é uma catástrofe o que se passa atualmente no SNS. Vamos esperar para ver…
Belmiro Fernandes Sequeira
Nota Biográfica
Belmiro Fernandes Sequeira
Situação profissional: Enfermeiro Aposentado desde março de 2014
Data de Nascimento: 03 de novembro de 1957 - 57 anos
Naturalidade: Campo, Viseu
Formação:
1978 – Curso Geral de Enfermagem na Escola de Enfermagem de Viseu
1998 – Curso de Estudos Superiores Especializados em Enfermagem Médico-Cirúrgica – Escola de Enfermagem Bissaia Barreto, Coimbra.
2002 – Pós graduação em Gestão dos Serviços de Saúde – ISCTE
Atividade Profissional:
Enfermeiro - cirurgia e cardiologia do Centro hospitalar Tondela Viseu de 1978 a 1998
Enfermeiro Especialista – UCIC do Centro Hospitalar Tondela Viseu de 1998 a 2003
Enfermeiro Chefe – UCIP do Centro Hospitalar Tondela Viseu de 2003 a 2013
Enfermeiro Chefe – Unidade de Cuidados Paliativos do Centro Hospitalar Tondela Viseu de 2013 a 2014
Professor convidado da Escola Superior de Enfermagem nos cursos de licenciatura, especialidade de Enfermagem médico-cirúrgica, curso de pós graduação em urgência e emergência.
Outras atividades:
Presidente do Grupo Recreativo, Cultural, Desportivo e Social de Vila Nova do Campo