Entrevista | Prevenção do Cancro do Colo do Útero

O HPV “é um dos maiores carcinogéneos humanos”

Atualizado: 
30/01/2023 - 14:45
Estima-se que cerca de 75 a 80% das pessoas sexualmente ativas entra em contacto com o vírus que está na origem do cancro do colo do útero, o HPV (Papiloma do Vírus Humano). No entanto, a prevenção desta infeção, e consequentemente do cancro do colo do útero, é possível através de vacinação. Segundo Cátia Correia, Assistente Hospitalar de Ginecologia/Obstetrícia e Coordenadora da Unidade de Colposcopia e Patologia do Trato Genital Inferior do Hospital de Braga, esta é a nossa maior arma “particularmente antes do início da atividade sexual” e que, combinada com o rastreio do cancro do colo do útero, tem potencial para erradicar a doença.

O cancro do colo do útero, considerado o segundo tipo de cancro mais frequente entre mulheres (de acordo com os dados oficiais são registados todos os anos 1000 novos casos da doença), é uma das complicações da infeção por HPV. Assim começo por perguntar em que consiste o Papilomavírus Humano? Como se transmite e qual a sua incidência?

O HPV, sendo um pequeno vírus, é um dos maiores carcinogéneos humanos, isto é, danifica as células até se transformarem em cancro. Este é o responsável pela infeção sexualmente transmissível mais frequente do mundo, que pode ocorrer durante o sexo vaginal, oral, anal ou durante o contacto íntimo de “pele com pele” entre pessoas em que uma esteja infetada. Existem mais de 200 genótipos diferentes de HPV, mas são só 14 os genótipos de alto risco que têm a capacidade de despoletar os cancros. No cancro do colo do útero este vírus é observado em 99.7% dos casos, mas também contribui para cancros em outras partes do corpo, como a vagina (70%), a vulva (40%), o ânus (84%), o pénis (47%) e a cabeça/pescoço (72% da orofaringe – base da língua/amígdalas). O cancro da orofaringe representa 78% dos cancros relacionados com o HPV no homem. A nível mundial são estimados 528 000 novos casos de cancro no colo do útero, 19 960 na vagina e vulva, 10 500 no pénis, 42 000 e 18 000 na orofaringe e 13 000 e 14 300 no ânus (respetivamente no homem e na mulher). Pelo exposto, as doenças associadas ao HPV mantêm-se um importante problema de saúde pública.

Pode-se falar em grupos de risco?

Não existem grupos de risco. Qualquer pessoa estará em risco a partir do início da atividade sexual. Basta ter tido um único parceiro durante toda a vida - independentemente da orientação sexual ou do tempo de inatividade sexual - para se poder estar infetado. Infelizmente, muitas mulheres com cancros avançados são aquelas que não têm atividade sexual há muito tempo ou com idades mais avançadas (por exemplo, viúvas, divorciadas sem companheiros nos últimos anos), que creem já não estarem em risco e, como tal, não realizam regularmente o teste Papanicolau. Provavelmente, este viés de raciocínio contribui para que, em Portugal, mais de metade das mortes por esta causa ocorra acima dos 65 anos.

Que fatores contribuem para o aumento do risco de infeção persistente por HPV?

Alguns fatores aumentam o risco de infeção persistente e a progressão para cancro. Dos fatores externos destacam-se: o serótipo do vírus (só o HPV 16 e o HPV 18 são responsáveis por cerca de 75% dos cancros), tabagismo (aumenta 3-4x o risco), imunossupressão (toma de medicamentos que baixam as defesas para tratamento de doenças autoimunes ou em transplantados), terapêuticas hormonais (contracetivos e terapêutica de substituição), início precoce da atividade sexual, múltiplos parceiros sexuais e multiparidade ou presença simultânea de outros vírus e bactérias. Por outro lado, os fatores intrínsecos, de onde se destacam a imunidade natural, a imunidade adquirida (através da vacinação contra o HPV), fatores de variação genética destes mecanismos e a fase reprodutora da mulher, também influenciam o risco de persistência desta infeção.

Esta infeção pode ser assintomática?

Esta infeção é quase sempre assintomática e transitória. Cerca de 80% dos indivíduos adquirem a infeção em alguma altura da vida, mas a maioria resolve espontaneamente (aproximadamente 90%) ao fim de 1 a 2 anos. O sintoma mais frequente induzido pelo HPV apresenta-se sob a forma de patologia benigna como são os condilomas ou verrugas genitais. Por outro lado, a perda de sangue com as relações sexuais, apesar de poderem aparecer em outros contextos, são um dos poucos sinais de alerta, sendo mandatório nestas situações excluir a presença de infeção por HPV. Só em fases mais avançadas da infeção, em que já ocorreu transformação maligna, é que podem surgir sintomas como dor, corrimento com cheiro fétido, dores nas relações, entre outros.

Como pode ser prevenida?

O uso do preservativo está indicado na prevenção de todas as infeções de transmissão sexual. Contudo, por não cobrir a totalidade da pele da região genital, não protege completamente da transmissão do HPV (apenas em cerca de 70% dos casos). Adicionalmente, a arma mais importante na prevenção é a vacinação contra o HPV. Tratando-se este de um vírus que não causa virémia (não circula no sangue), a imunidade inata e a adaptativa natural que desencadeia é muito fraca, não gerando uma resposta imunológica eficaz contra uma reinfeção ou reativação pelo mesmo serótipo viral. Então, quando o sistema imunitário da pessoa não tem força para eliminá-lo, este permanece inativado (“adormecido”), reativando (“acordando”) quando as defesas envelhecem (imunossenescência) ou se encontram mais frágeis (por imunodepressão ou imunossupressão). A solução é de uma forma artificial colocar um antigénio (parte do agente infecioso) no corpo através de uma vacina, gerando uma resposta imune e prevenindo as doenças por esse patogéneo. As vacinas são uma das formas mais bem-sucedidas, seguras e de baixo custo de proteger a saúde.

Em que consiste o rastreio do HPV e a quem se destina? Qual a importância do diagnóstico precoce?

O rastreio do cancro do colo do útero destina-se a mulheres que já tenham iniciado a sua atividade sexual e consiste na realização de uma colheita, em posição ginecológica, de células do colo uterino com uma escovinha. Neste material pode-se avaliar duas coisas: a presença do vírus HPV de alto risco (e assim identificar as mulheres infetadas e com potencial de desenvolver lesões pré-malignas ou malignas – a opção mais recomendada) e/ou o teste Papanicolau/citologia cervical/colpocitologia (deteta os danos já provocados, ou seja, células pré-cancerígenas e cancerígenas – exame realizado isoladamente antes do advento da testagem do HPV). Quando estes testes estão alterados, as mulheres são encaminhadas para um exame mais específico com um colposcópio (tipo um microscópio), que permite uma análise mais pormenorizada do colo do útero e a identificação/biópsia das áreas alteradas. Desta forma, consegue-se realizar um diagnóstico precoce das lesões, imprescindível para tratamentos menos agressivos (com impacto positivo na fertilidade futura), evitando-se assim o desfecho mais grave desta infeção. Nos homens tem-se investigado a pesquisa do HPV no sémen e em zaragatoas da glande, contudo estes testes ainda não se encontram acessíveis de forma difusa.

Tendo em conta que entre 50 a 80% dos indivíduos adquirem infeção por HPV em algum momento das suas vidas, o que falta fazer em termos de prevenção?

A prevenção primária através da vacinação contra o HPV é a nossa maior arma, particularmente antes do início da atividade sexual. Neste âmbito a vacinação gratuita no PNV foi um grande passo. Em termos de saúde pública, a vacinação em massa depois dos 25 anos tem uma relação de custo/benefício discutível, contudo sem dúvida que é benéfica numa perspetiva de proteção individual, pelo que deve ser sempre aconselhável. Atualmente, o principal entrave para uma vacinação mais abrangente é o custo da mesma, que ainda não é comparticipada fora do PNV. Esta limitação muitas vezes é ultrapassada com a realização de um esquema de administração alargado, permitindo-se assim um menor impacto no orçamento familiar. Certamente que a comparticipação seria um grande contributo para estender a vacinação a outros grupos, com vista à eliminação dos cancros associados a este vírus e, consequentemente, a redução dos gastos no diagnóstico e tratamento dessas neoplasias malignas.

Qual a importância da vacinação? Quem a pode e deve tomar? Há um limite de idade para que possa ser administrada?

Visto que não existe nenhum tratamento que elimine imediatamente o HPV, a vacinação contra o mesmo é de extrema importância. De facto, esta vacina apresenta potencial para prevenir 90% dos cancros e, em maior percentagem, a doença benigna associada ao HPV. Por isso, foi introduzida a administração gratuita desta vacina no PNV, pelos 10 anos, às meninas (desde 2008) e aos meninos (desde 2020). Nos restantes grupos etários ela pode ser adquirida na farmácia. A vacina atualmente comercializada protege contra 7 serótipos de HPV de alto risco, aqueles com um comportamento mais agressivo. De salientar ainda, que quem já realizou a vacina anterior que protegia apenas contra 2 serótipos de HPV de alto risco, pode realizar a vacina mais recente. Inicialmente, pensava-se que esta só seria útil para quem não tivesse começado a atividade sexual. No entanto, vários estudos têm demonstrado a sua eficácia em mulheres mais velhas (sem limite de idade de acordo com a Agência Europeia do Medicamento), com especial recomendação naquelas com história de infeção/lesão prévia pelo HPV (podendo reduzir em mais de 80% as recidivas) e aconselhada em homens (particularmente naqueles em que foi identificado o HPV nas companheiras).

No que diz respeito ao cancro do Colo do útero, a que sintomas devemos estar atentas? E com que periodicidade os rastreios devem ser realizados?

Como já referido anteriormente, esta infeção é quase sempre assintomática, logo nunca devemos esperar por sintomas para realizar o rastreio, porque aí já pode ser tarde e as opções terapêuticas mais limitadas. A chave é as mulheres realizarem o rastreio regular (com a pesquisa do HPV AR e/ou teste Papanicolau). Este rastreio pode ser realizado no âmbito de um programa de rastreio organizado em articulação com os centros de saúde ou de forma oportunista pelos ginecologistas. Atualmente, em Portugal, o rastreio pode ser feito de forma gratuita por mulheres entre os 25 e os 60 anos, com teste de HPV de alto risco, a intervalos de cinco anos. Este é um rastreio que está muito bem organizado e deve ser aproveitado por todas as mulheres incluídas nesta faixa etária. Fora do SNS poderá fazer-se de três em três anos. De salientar que mesmo as mulheres vacinadas, as pertencentes ao grupo etário de mais de 60 anos ou aquelas já submetidas a remoção do útero com história de infeção prévia por HPV, devem manter a vigilância/rastreio regular.

Diria que, hoje, os portugueses estão mais despertos para esta doença?

Em pleno século XXI, a minha resposta deveria ser sim. Apesar de concordar que atualmente seja a altura em que os portugueses estão mais informados acerca deste assunto (pela implementação da vacinação no PNV e pelas ferramentas online disponibilizadas), continuo a achar que se mantém aquém do desejado para uma sociedade tão evoluída, onde a informação circula a uma velocidade sem precedentes. Acredito que o maior entrave se prende com o facto de tratar-se de um assunto relacionado com a intimidade, onde existem ideias erradas pré-concebidas e muitas lacunas no conhecimento. Frequentemente presencio nas consultas a surpresa aquando da explicação da patologia, pois encontra-se estigmatizado que esta infeção se relaciona apenas com quem tem múltiplos parceiros, o que contrasta com a perceção da comunidade científica para a qual é considerado como um evento “natural” que afeta qualquer pessoa sexualmente ativa.

O que é que todos temos mesmo de saber sobre o HPV e cancro do colo do útero?

  • Todos os indivíduos que tenham iniciado a sua atividade sexual estão em risco de contrair a infeção por HPV.
  • A vacinação contra o HPV é a nossa maior arma.
  • A combinação da vacinação contra o HPV e o rastreio têm o potencial para eliminar o cancro do colo do útero no futuro. 
Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.