Compreender a dor
Ironia do destino, a dor pode ser simultaneamente um dos mecanismos mais importantes na preservação do nosso organismo e, quando no contexto de uma doença crónica, um dos maiores fatores de sofrimento e consequente perda de qualidade de vida. De facto, frequentemente a dor ultrapassa a condição de sintoma e torna-se ela própria a doença, autónoma e dominadora.
É por tudo isto que se torna impossível abordar a dor como um fenómeno específico, suscetível de se definir de forma simples, de se enquadrar numa classificação linear.
Existem atualmente várias classes farmacológicas disponíveis para o controlo da dor. São dezenas de fármacos, cada um com a sua indicação ou peculiaridade e ainda assim a dor enquanto sintoma é frequentemente mal compreendida e até mal-aceite pelos próprios clínicos. Talvez porque seja um sintoma pelo qual mais tarde ou mais cedo todos passamos ou do qual temos memória em alguém próximo ou ainda porque não o podendo confirmar ou quantificar preferimos desvalorizar.
E os exemplos repetem-se todos os dias. Confesso que em quase 30 anos de atividade médica ainda me surpreende a leviandade com que frequentemente dizemos “esse tipo de lesão não pode doer tanto!” ou “essa dor é porque está deprimido!” como se a intensidade da dor dependesse daquilo que nós achamos adequado, como se na ausência de uma evidência anatómica a dor sentida fosse menos importante. E o que me parece ainda mais grave é que tendo consciência de tudo isto, também eu próprio me ouço a repetir este tipo de sentenças.
É verdade que temos agora consultas de dor com a capacidade de atuar a um nível muito mais elaborado, mas a consciencialização de que a dor tem um carácter social que vai muito além do sintoma ou doença médica ainda está longe de acontecer e mais distante ainda está a capacidade de promover mudanças significativas na prática clínica e na compreensão destes doentes.