Esquizofrenia “ainda acarreta um elevado estigma e discriminação”
Estima-se que a Esquizofrenia afete 1% da população mundial e, embora esta patologia não seja tão comum como outras perturbações mentais, os sintomas podem ser muito incapacitantes. Neste sentido, começo por lhe perguntar em que consiste e quais os principais sintomas?
A esquizofrenia é uma doença médica do foro da Psiquiatria que é crónica e que provoca alterações a nível cerebral que afetam múltiplas áreas: pensamento, perceção, afetos, cognição e comportamento global. Tem, por isso, um elevado impacto na pessoa que está doente, na sua família e na sociedade.
Caracteriza-se, entre outros sintomas, pela presença de sintomas positivos (também chamados, sintomas psicóticos), isto é, sintomas que não são reais, mas nos quais a pessoa acredita intensamente; e sintomas negativos, isto é, sintomas ligados aos afetos e à capacidade de interagir com os outros.
Os sintomas mais típicos são os delírios, que são ideias falsas nas quais a pessoa doente acredita com total convicção, mas que não são partilhadas pelos demais (por exemplo, achar que os vizinhos montaram um sistema de câmaras e microfones para o vigiar); e as alucinações, isto a sensação de estarem presentes vozes que só a pessoa doente consegue ouvir (por exemplo, achar que terceiras pessoas, não presentes, falam entre si, comentando o seu comportamento, ou que se dirigem a si diretamente). As alucinações, ainda que menos frequentes do que as auditivas, podem também ser olfativas, táteis e visuais.
Tipicamente, se estiverem presentes delírios e alucinações, tais alterações farão com que a pessoa doente passe a apresentar um pensamento desorganizado, nem sempre fácil de acompanhar, e também um comportamento desorganizado que, por regra, é globalmente congruente com aquilo em que a pessoa doente crê estar a acontecer.
Além dos sintomas positivos, mais exuberantes e visíveis para os outros, estão presentes sintomas negativos que são uma parte muito revelante da morbilidade desta doença. Os mais comuns são a diminuição da expressão emocional (menor reação às coisas; expressão facial e gestual empobrecidas; menor contacto olhos nos olhos) e a avolia, ou seja, a diminuição da iniciativa para se envolver em atividades.
Qual a sua prevalência e quais as faixas etárias mais acometidas por este transtorno? A partir de que idade pode ser diagnosticada?
Estima-se que a prevalência ao longo da vida da Esquizofrenia seja de aproximadamente 0,3-0,7%, variando de acordo com os estudos, sendo a prevalência semelhante a nível mundial. Pode estar aumentada em alguns grupos como, por exemplo, entre migrantes e refugiados, mas também depender do estatuto socioeconómico (mais comummente mais baixo) ou de viver em meio urbano. Afeta ambos os sexos, sendo a sua distribuição semelhantes entre os sexos, muito embora alguns estudos revelem rácios mais elevados no sexo masculino, sobretudo em apresentações com maior proeminência de sintomas negativos e maior duração da doença. O início da doença ocorre, habitualmente, de forma mais precoce no sexo masculino, entre o final da adolescência e o início da idade adulta (isto é, entre os 18 e os 25 anos); já no sexo feminino, o início é um pouco mais tardio (no final da segunda década de vida) e tem um outro pico de incidência pelos 40 anos de idade.
Sabendo que existem alguns sintomas precoces associados a esta perturbação, quais os sinais de alerta?
A apresentação da doença pode ser ou insidiosa ou mais súbita e, por ter uma apresentação bastante heterogénea, é difícil definir que sinais são mais reveladores da possibilidade de estar doente. Ainda assim, devemos ter atenção a alterações como a diminuição progressiva do envolvimento social nos jovens (muitas vezes as famílias pensam ser uma fase da vida, um período depressivo por uma qualquer razão circunstancial, um momento de dificuldades de integração académica), muitas vezes acompanhado de uma deterioração do desempenho escolar ou académico, assim como da qualidade dos relacionamentos interpessoais (maior dificuldade em manter amizades, ou afastamento; ausência de relações amorosas); a verbalização de ideias estranhas (como ideias persecutórias, ideias místicas) e a presença de comportamentos desadequados ou pouco compreensíveis (frequentemente com alguma ligação às ideias verbalizadas); alguns sintomas que aparentam quadros depressivos, como a diminuição do envolvimento em atividades ou diminuição do prazer em atividades de que anteriormente gostava, ou ainda a diminuição com os cuidados de higiene e de alimentação.
Sei que existem diferentes tipos de esquizofrenia. Que tipo são estes e como se caracterizam? Qual ou quais são as formas mais graves da doença?
Atualmente, os sistemas de classificação mais usados (DSM-5-TR e CID-11) já não distinguem diferentes subtipos de Esquizofrenia. Contudo, classicamente, a Esquizofrenia era dividida em vários subtipos. A saber: a esquizofrenia paranoide é, de longe, a mais comum e caracteriza-se pela presença de ideias persecutórias, por regra bem sistematizadas, e alucinações auditivas; a esquizofrenia hebefrénica ou desorganizada é caracterizada por um pensamento desorganizado que se acompanhada de um discurso incoerente e difícil de acompanhar, assim como por uma interação social desadequada; a Esquizofrenia catatónica é, nos dias de hoje, pouco frequente, predominando alterações da psicomotricidade como, por exemplo, agitação, mutismo, negativismo e estereotipias; a esquizofrenia indiferenciada é um subtipo que se atribui às pessoas que, cumprindo critérios para Esquizofrenia, não se enquadram em qualquer um dos subtipos anteriores; e, por fim, a Esquizofrenia residual é um subtipo que corresponde à fase crónica da doença, predominando os sintomas negativos e, consequentemente, uma disfuncionalidade global.
Quais os fatores que podem contribuir para o desenvolvimento desta perturbação?
Não existe uma causa definida para o desenvolvimento de Esquizofrenia, conquanto se saiba que a sua manifestação depende de múltiplos fatores, nomeadamente contributos genéticos (não existindo, ainda assim, alterações específicas que determinem a sua manifestação), alterações do neurodesenvolvimento e diversos fatores do meio (por exemplo, gravidez ou parto complicado, traumatismo craniano e, muito importantemente, o uso de substância como a canábis e os alucinogénios).
Sem cura, para que está indicado o tratamento e em que consiste?
O tratamento farmacológico é absolutamente fundamental para todas as pessoas diagnosticadas com Esquizofrenia. Atualmente, os fármacos existentes atuam ao nível da Dopamina — um neurotransmissor cujo funcionamento está alterado —, permitindo a sua regulação e, assim, a diminuição dos sintomas positivos. É advogado que o tratamento seja instituído o mais precocemente possível e a sua utilização é, à partida, crónica. Podem usar-se fármacos de administração oral (isto é, comprimidos) ou, por terem muitos benefícios aos níveis da adesão ao tratamento, tolerabilidade, diminuição das recaídas, melhor qualidade de vida e menores custos associados à doença, fármacos de administração injetável que pode ser, dependendo da molécula usada, quinzenal, mensal, bimensal, trimestral ou até semestral.
Qual o papel da terapia no tratamento da esquizofrenia?
Idealmente, o tratamento da Esquizofrenia implica uma equipa multidisciplinar que integre, entre outros profissionais, médicos, enfermeiros, psicólogos e terapeutas ocupacionais. Os psicólogos são fundamentais, por exemplo, para trabalhar a crítica para a doença, a adesão ao tratamento, diminuir o estigma da doença e fazer psicoeducação quer junto da pessoa doente, quer da sua família. Também os terapeutas ocupacionais são essenciais para a promoção da autonomia dos doentes em múltiplas áreas do quotidiano.
De que modo a doença condiciona o dia-a-dia do doente? É possível manter uma rotina profissional?
A Esquizofrenia é uma doença crónica, pelo que não tem cura, mas tem tratamento. Deve, por isso, ser tratada o mais precocemente possível, por forma a tentar garantir que a pessoa mantém a melhor funcionalidade possível, uma vez que, dependendo do número de episódios e do tempo de doença não tratada, pode condicionar diversas limitações com impacto na cognição e nas capacidades ocupacionais e sociais, como, por exemplo, a manutenção de um trabalho ou de relações sociais e familiares satisfatórias. A forma como a doença vai impactar na pessoa depende depois de vários fatores como a resposta ao tratamento, a adesão ao plano de tratamento, a ausência de consumo de substâncias e os meios a que a pessoa tenha acesso que possam permitir mitigar eventuais défices que a doença possa condicionar. Felizmente, a existência de fármacos eficazes e bem tolerados permite, nos dias de hoje, que a pessoa tenha um melhor desempenho e uma importantíssima redução do impacto que a doença por si só condiciona, pelo que é hoje muito comum vermos estas pessoas a ter uma vida plena e pouco, ou relativamente pouco limitada, pela doença.
Em termos sociais, quais as principais dificuldades / barreiras que se apresentam a estes doentes? Estes podem ter uma vida ativa e “funcional”?
Socialmente, a principal barreira que estas pessoas enfrentam é o estigma associado à doença, uma vez que a sociedade ainda perpetua muitos preconceitos relativamente à doença. Evidentemente, a doença, nomeadamente em períodos de descompensação ou de maior cronicidade, pode gerar na pessoa doente um discurso mais difícil de compreender ou mesmo a verbalização de ideias estranhas que causam perplexidade nos outros, o que contribuiu para um certo afastamento dos outros, uma vez que a nossa tendência geral é para não tolerar o que foge daquilo que consideramos ser normal. Da mesma forma, a doença pode condicionar na pessoa uma maior dificuldade na expressão de emoções e de sentimentos, o que também pode diminuir a sua capacidade de interagir com os outros e de ter iniciativa. Tudo isto pode condicionar disfuncionalidade laboral e períodos de inatividade. Contudo, quando devidamente tratadas, estas pessoas podem manter uma vida ativa e funcional quer aos níveis pessoal, familiar e social, quer ao nível laboral.
Qual o seu peso para as famílias? E para a sociedade?
A doença tem um peso elevado no microcosmo das famílias que têm maior dificuldade em lidar com o estigma associado à doença ou uma menor compreensão da doença, daí que a psicoeducação e a integração das famílias seja essencial ao sucesso terapêutico e a um melhor desempenho da pessoa doente. A família é, inquestionavelmente, essencial a um bom funcionamento da pessoa doente, podendo contribuir de forma decisiva para a adesão aos diversos aspetos do plano terapêutico e para a integração familiar e social. Já na sociedade, ou seja, no macrocosmo, o estigma associado à Esquizofrenia é muito elevado, sobretudo por desconhecimento ou ignorância. Assim, devem existir campanhas de sensibilização e de informação sobre o que é a Esquizofrenia, o que creio que permitirá diminuir o estigma, identificar e tratar casos mais precocemente (diminuindo a morbilidade) e ajudar a promover alterações sociais e/ou legislativas que ajudem a uma melhor integração social destas pessoas. Tal permitirá, igualmente, reduzir o impacto social direto da doença, desde logo a nível económico, com uma clara redução de custos.
Por que motivo esta é uma doença tão estigmatizante? Que mitos existem associados? E o que pode ser feito para mudar esta realidade?
A doença é muito estigmatizante porque, desde logo, não havia qualquer tratamento eficaz até aos anos 50 do século XX. Isso fazia com que a doença evoluísse de forma crónica, o que se traduzia numa muito marcada incapacidade de funcionamento das pessoas acometidas pela doença. Tal ajudou a criar as ideias erradas de que estas pessoas são perigosas, agressivas e incapazes, pelo que havia (e ainda há!) a ideia de que o diagnóstico era uma sentença de incapacidade permanente, o que levava à exclusão dessas pessoas. Os asilos psiquiátricos eram, assim, «depósitos» destas pessoas em cuja doença ia evoluindo até fases muito incapacitantes. Dada a ausência de tratamento, estas ideias populares foram perpetuadas durante séculos, pelo que nos cabe agora, com os avanços científicos e com os psicofármacos, melhorar a qualidade de vida das pessoas doentes e assim, juntamente com campanhas informativas para a população geral e sensibilizando a classe política acerca das necessidades destas pessoas, contribuirmos todos para que se derrubem barreias e mitos e se olhe para esta doença como outra qualquer doença crónica grave.
No âmbito do dia Mundial da Saúde Mental, que se assinalou no início deste mês, que mensagem gostaria de deixar?
A saúde mental é essencial ao nosso bem-estar. Saúde mental consegue-se arranjando tempo para descansar, ter férias, fazer exercício, para nos alimentarmos corretamente e nos relacionarmos com os outros, para fazer atividades que nos deem prazer e, obviamente, também para trabalhar porque, desde logo, é a nossa forma de nos sustentarmos financeiramente e uma fonte de realização pessoal muito importante. Tudo isso irá ajudar-nos a evitar alguns fatores que nos podem levar a ficar doentes, preservando a saúde mental.
No caso de ficarmos doentes e de a doença ser mental, devemos saber que a doença mental é uma doença também do corpo, porque não há mente sem corpo. Somos um só organismo. Por isso, quem tem doença mental, não é fraco, não tem falta de caráter, não é preguiçoso ou esquisito, nem tem falta de vontade, não é defeituoso. O que tem é uma doença. E quem tem uma doença, o que procura? Ajuda e, quando necessário, tratamento. Logo, ter uma doença mental é como ter uma diabetes, uma doença da pele ou um pé partido. Assim, se acharmos que não estamos bem do ponto de vista mental, não descuremos o problema ou achemos que conseguimos dar a volta sozinhos. Procuremos ajuda profissional junto do médico de família, do enfermeiro do centro de saúde, do psicólogo, do psiquiatra, ou junto de um qualquer profissional de saúde.