Investigação

Mosca-da-fruta: o pequeno herói da investigação científica foi completamente mapeado

Um grande consórcio internacional criou o primeiro atlas completo de todas as células da mosca-da-fruta, uma pequena, mas poderosa criatura. Cientistas da Fundação Champalimaud participaram no gigantesco esforço.

Há mais de um século que as moscas-da-fruta desempenham um papel essencial na investigação em biologia, desde que, utilizando estes pequenos insetos, Thomas Hunt Morgan descobriu que os genes residem nos cromossomas, basicamente desvendando o mecanismo de base da hereditariedade. Muitos cientistas seguiram as pegadas de Morgan e vários acabaram por ganhar o prémio Nobel pelas revolucionárias descobertas que fizeram utilizando este pequeno organismo como modelo animal.

Apesar do seu tamanho, as moscas-da-fruta são mais semelhantes aos humanos do que podem à partida parecer. Dos cerca de 14.000 genes do genoma da mosca que codificam proteínas, aproximadamente dois terços têm um equivalente humano. Para além de terem permitido adquirir conhecimentos-chave sobre o funcionamento de mecanismos biológicos em áreas como a genética e a biologia do desenvolvimento, as moscas-da-fruta têm tido um papel vital no desenvolvimento de tratamentos contra o cancro, as doenças imunes ou a diabetes, para citar apenas alguns exemplos.

A revolução da célula como unidade

Desde o aparecimento da tecnologia de genómica de célula única (single-cell), os cientistas tornaram-se capazes de estudar os tecidos biológicos com uma resolução sem precedentes, analisando, em simultâneo, a expressão de todos os genes em milhares de células individuais. Os resultados obtidos a uma escala tão minuciosa como esta podem ajudar a decifrar de que maneira certas células diferem e interagem com as suas vizinhas, e também a perceber a sua origem e função dentro do tecido.

Graças à popularidade inabalável das moscas-da-fruta na investigação biomédica – são pequenas e fáceis de criar –, a análise de célula única rapidamente ganhou força nesta comunidade científica. 

“Vários grupos de investigação em todo do mundo, incluindo o meu próprio laboratório, aplicaram recentemente a técnica de sequenciação de célula única a diversos tecidos da mosca-da-fruta em diversas fases do seu desenvolvimento”, diz Stein Aerts, líder de um grupo do Instituto de Biotecnologia da Flandres (VIB) Lovaina e da Universidade Católica de Lovaina (instituição também conhecida como VIB-KU Leuven), na Bélgica. “O problema é que os dados foram gerados por laboratórios diferentes, utilizando moscas geneticamente diferentes, utilizando protocolos e plataformas de sequenciação diferentes, e isso tem dificultado a comparação sistemática da atividade dos genes entre as diversas células e os diversos tecidos.”

Stein Aerts é um dos fundadores do consórcio Fly Cell Atlas (Atlas das Células da Mosca), cujos primórdios remontam a uma reunião de cientistas que trabalham com moscas-da-fruta, que teve lugar em dezembro de 2017, em Lovaina. Os planos mirabolantes discutidos em torno de algumas cervejas belgas tornaram-se hoje realidade: após quatro anos, inúmeras reuniões e trabalho árduo, o consórcio apresenta agora, na revista Science, o primeiro Atlas completo das Células da Mosca.

Trabalho de equipa, sonhos realizados

“Foi um trabalho titânico”, diz Liqun Luo, da Universidade de Stanford, que co-liderou este esforço com Aerts e mais três líderes da área: Stephen Quake, de Stanford e do Chan Zuckerberg Biohub (CZ Biohub, EUA); Bart Deplancke, da EPFL (Escola Politécnica Fédérale de Lausanne); e Norbert Perrimon, de Harvard. “No total, o consórcio envolveu 158 peritos de 40 laboratórios diferentes, de todo o mundo, e foi apoiado, tanto tecnicamente como financeiramente, pelo CZ Biohub”, acrescenta Luo.

Dois cientistas em início de carreira, cada um a trabalhar em cada lado do Atlântico, geraram os dados e conduziram as análises: Jasper Janssens, estudante de doutoramento que em breve irá obter o seu PhD pelo VIB-KU Leuven; e Hongjie Li, professor auxiliar no Colégio de Medicina Baylor (EUA), que fez uma pós-graduação no laboratório de Luo, em Stanford.

Do lado da Champalimaud, os co-autores do artigo agora publicado na Science são Carlos Ribeiro, investigador principal do laboratório de Comportamento e Metabolismo; Zita Santos, Darshan Dhakan e Ibrahim Tastekin, investigadores pós-doutorados, e Rita Figueiredo, aluna de doutoramento – todos eles membros do laboratório de Ribeiro.

Diz Hongjie Li: “O nosso objectivo era estabelecer um atlas das células da mosca-da-fruta adulta, na sua totalidade – utilizando moscas geneticamente idênticas, o mesmo protocolo de dissociação e a mesma plataforma de sequenciação. Desta maneira, seríamos capazes de obter uma categorização exaustiva de todos os tipos de células, integrando os dados do nosso transcriptoma de célula única com o conhecimento existente sobre a expressão dos genes e dos tipos de células, de forma a comparar sistematicamente a expressão dos genes em todo o organismo e entre machos e fêmeas. Isso também nos permitiria identificar os marcadores específicos dos tipos de células na totalidade do organismo da mosca.”

A equipa aplicou duas estratégias complementares para atingir o seu objectivo, acrescenta Janssens: “Sequenciámos células individuais de tecidos dissecados de forma a identificarmos o tecido de onde provinham, mas também sequenciámos células da cabeça inteira e do corpo inteiro para garantir que tínhamos amostras de todas as células.”

Após a sequenciação de todas as células da mosca, era necessário fazer sentido da enorme quantidade de dados gerados. Uma tarefa impossível de ser levada a cabo por uma única equipa de trabalho. Para ultrapassar este desafio foi criado um consórcio de especialistas capazes de identificar e anotar os diferentes tipos de células. Esta foi uma das importantes contribuições do laboratório de Carlos Ribeiro na Fundação Champalimaud, em particular na anotação dos dados provenientes de células do cérebro, ovários e tecido adiposo da mosca.

O conjunto de dados, designado de Tabula Drosophilae – o nome em latim da mosca-da-fruta é Drosophila melanogaster – contém mais de 580.000 células, que pertencem a mais de 250 tipos celulares distintos.

“Muitos destes tipos de células foram agora caracterizados pela primeira vez, seja porque são células raras, seja porque o perfil da expressão dos genes de muitos tipos de células só pode ser obtido através da sequenciação do ARN de núcleo único, que aliás constitui mais um dos aspectos a destacar do nosso estudo,” acrescenta Janssens. A sequenciação do ARN de núcleo único utiliza núcleos celulares isolados em vez de células inteiras para obter o perfil da expressão dos genes de uma célula.”

Este trabalho permite-nos, pela primeira vez, comparar o transcriptoma, ou seja, o mapa dos genes ativos, entre diferentes células dentro do mesmo organismo e perguntar o que as torna semelhantes e diferentes. O metabolismo celular tem ganho muita atenção recentemente por saber-se poder estar alterado em várias doenças como o cancro ou a diabetes. No entanto, para percebermos o que poderá estar alterado no contexto patológico precisamos perceber melhor estes processos no contexto fisiológico. Algo que este trabalho nos vai agora permitir estudar.”, diz Zita Santos.

Ao serviço da medicina (humana)

“O que é particularmente inspirador”, diz Deplancke, “é a forma como a comunidade da moscada-fruta se uniu, ultrapassando fronteiras biológicas, tecnológicas e computacionais, para gerar este gigantesco conjunto de dados e estudar todos os tipos de células diferentes com grande pormenor, talvez dando origem ao atlas de células mais detalhado de sempre.”

“Temos, portanto, a convicção de que o nosso Atlas das Células da Mosca irá constituir um valioso recurso para a investigação enquanto referência para estudos da função dos genes à escala da célula individual”, diz Perrimon. “Isso será útil para todos os que estudam os processos biológicos na mosca, e também para desenvolver modelos de doenças humanas, ao nível do organismo inteiro, com a resolução de uma célula individual".

Para possibilitar análises adicionais bem como análises costumizadas baseadas em outras ferramentas de célula única, o consórcio disponibilizou, online e gratuitamente, todos os seus dados através de múltiplas plataformas.

“Estou muito feliz por o CZBiohub ter conseguido contribuir para este recurso monumental para a comunidade”, diz Quake. “Ficamos muito entusiasmados ao ver que atlas de células de organismos completos estão a ser concretizados para uma série de organismos importantes e a ser disponibilizados aos cientistas do mundo inteiro.”


Legenda: Sumário do tipo de dados que compõem o Atlas das Células da Mosca, um projeto internacional que disponibiliza à comunidade científica dados de todas as células que compõem a mosca da fruta. Os dados agora disponibilizados permitirão, pela primeira vez, identificar os processos moleculares que distinguem diferentes tecidos e estudar como as mais variadas funções moleculares são reguladas nesses tecidos e em diferentes estados fisiológicos, como por exemplo, durante o desenvolvimento.

Fonte: 
Fundação Champalimaud
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
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