Pandemia conduziu, "inevitavelmente, ao exacerbamento da sintomatologia" associada à doença mental grave
Sendo o tratamento, habitualmente, um dos grandes desafios associados à esquizofrenia, que impacto terá tido a pandemia Covid-19 sobre estes doentes? Quais as principais consequências não só do isolamento e da suspensão de consultas ou tratamentos?
Esta é uma pergunta pertinente, visto que a Esquizofrenia (que tem diferentes tipos/quadros clínicos) é uma doença mental grave, normalmente associada a uma doença crónica, ou seja, com uma necessidade, considere-se significativa, de um acompanhamento especializado continuado – dependendo de cada caso - e até porque, na sua grande maioria, precisam de estar compensados medicamentosamente com antipsicóticos para combater a sintomatologia positiva/aguda da doença.
A verdade é que o anúncio dado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de que estávamos diante de uma pandemia sanitária de contornos intangíveis gerou diversas mudanças no funcionamento da sociedade tal qual a conhecíamos: pessoas em quarentena, cidadãos preocupados por não poderem ficar em casa, funcionários em teletrabalho, escolas e universidades em formato de E@D, setores económicos encerrados, dificuldades no acesso a serviços essenciais, nomeadamente o da saúde, entre muitas outras.
Um inquérito divulgado pela Organização Mundial de Saúde confirma que a pandemia COVID-19 interrompeu ou suspendeu serviços essenciais de saúde mental em 93% dos países do mundo, numa altura em que a procura e necessidade de assistência aumentou e continua a aumentar exponencialmente.
Aliás, segundo um estudo recente do Instituto Nacional Ricardo Jorge, 7 em cada 10 portugueses em quarentena acusaram um sofrimento psicológico significativo. Mais de metade dos portugueses que ficaram em casa por prevenção ou por terem sido infetados pelo SARS-COV 2 – COVID – 19 – apresentaram sintomas de depressão moderada a grave.
Numa primeira instância, é certo e verdadeiro, Portugal foi dos poucos países onde a procura de apoio psicológico aumentou e a assistência fornecida foi, de igual modo, concedida/acompanhada, ou seja, o acesso aos serviços de saúde mental – embora que em formato digital/à distância na maioria dos casos – continuou a existir no nosso país, especialmente na apelidada primeira vaga, estado de emergência nacional com confinamento geral.
No entanto, com a pandemia aumentaram significativamente as situações de incerteza profissional, desemprego, problemas acrescidos na prestação de cuidados básicos (ex.: habitação/rendas; prestações, educação, saúde, alimentação, entre outros), ambientes familiares tensos – muitas vezes com problemas conjugais e familiares acrescidos -, que afetaram o modo de vida dos portugueses de forma intangível.
Estas situações, associadas ao “princípio da incerteza” que esta pandemia trouxe – não sabemos ainda quando, nem como vai terminar – tem, obviamente, consequências para todos, ainda mais para quem apresentava já uma doença mental grave antes da pandemia, como é o caso da Esquizofrenia, que viram exacerbados inevitavelmente os sintomas e a sintomatologia que já apresentavam.
Ora, estas consequências, em primeira instância, além das obvias para as pessoas com experiência de doença mental grave, trouxeram, inevitavelmente, maior pressão e maior tensão para as famílias e/ou cuidadores informais.
De um modo geral, o que pode condicionar o bom prognóstico/ evolução desta doença? Quais são os principais pilares para o tratamento da esquizofrenia?
Assim de forma muito genérica, mas tentando ser claro, curto e conciso, afirmo logo à partida que quanto mais rápido se estabelece um diagnóstico como o da Esquizofrenia, maior é a probabilidade do tratamento, reabilitação ou reinserção da pessoa ter sucesso. Ou seja, quanto mais célere e maior for o acesso aos cuidados de saúde, melhor é o prognóstico e maior são as probabilidades de uma doença – que com o tempo tem tendência a criar uma incapacidade psicossocial crescente – ter sucesso!
Uma das principais razões pela qual luto e acredito na reforma traçada para o nosso país – Plano Nacional para a Saúde Mental da Direção do Programa Nacional para a Saúde Mental da Direção-Geral de Saúde/Ministério da Saúde – é mesmo esta. Ou seja, sabendo de antemão, o que já fora feito, testado e comprovado em países que já a implementaram com sucesso, acredito muito que as medidas estruturais, funcionais e terapêuticas que estão em marcha (ainda que um pouco lentas) são o principal “comprimido” para facilitar o recovery, ou seja, a reabilitação clínica e pessoal, da pessoa.
Se todos conseguissem ter acesso, qual seria o melhor modelo de tratamento para a esquizofrenia?
Como não estamos a falar de uma doença física, a resposta a esta questão torna-se sempre um pouco mais difícil de generalizar porque depende sempre de vários fatores como, por exemplo, a pessoa/o caso em si (fatores de manutenção da doença, fatores precipitantes da doença e fatores predisponentes da doença), assim como, os fatores contextuais (familiares, académicos/educacionais, profissionais, etc.) em que a pessoa se encontra, as suas aspirações, sonhos e (in)capacidades ou, por exemplo, a frequência, intensidade e duração da sintomatologia que apresentam.
É importante relembrar que a Esquizofrenia não é passível de ser identificada pela prova anatómica e/ou biológica, o seu diagnóstico é feito tendo por base a análise clínica dos sintomas, por vezes numerosos e muito complexos, estando estes divididos em sintomas positivos – ou agudos (disfunções das funções cerebrais) - e sintomas negativos – ou crónicos (perda ou diminuição dessas funções). Ora, muitas vezes, o que acontece é que os subtipos de Esquizofrenia se diferenciam entre si apenas quanto à sintomatologia positiva. Os sintomas negativos apresentam-se como sendo relativamente comuns em todos os subtipos, ou seja, surgem como consequência da doença na vida das pessoas e no seu mundo envolvente. Por causa desta doença, é frequente que percam o emprego, se divorciem ou separem, se tornem novamente dependentes dos pais, se isolem e reduzam, significativamente, o seu número de contactos sociais e relacionais. E para este tipo de problemas não há “comprimido” que resulte, a não ser a facilidade e a rapidez no acesso a estruturas e intervenções especializadas, programas de reabilitação psicossocial ou da metodologia recovery.
Pela experiência que tenho, e que temos na RECOVERY, muitos são os relatos dos doentes e seus familiares/cuidadores informais que se resumem à seguinte frase: «parece que assisti à morte da pessoa tal como a conheci!». Na RECOVERY (www.recovery.pt), o tratamento e a reabilitação de pessoas portadoras de esquizofrenia e seus familiares/cuidadores são, de facto, uma das nossas maiores especialidades. É uma perturbação que tantas “pessoas fantasma” afeta e com a qual muitas famílias desamparadas sofrem “em silêncio”, sem compreensão, sem compaixão, sem apoio.
Sabemos, de antemão, que é necessária uma intervenção combinada, ou seja, medicamentosa para controlar os sintomas positivos (atividades delirantes, alucinações, etc.) e de reabilitação psicossocial para trabalhar a sintomatologia negativa e crónica, devolvendo a esperança e o controle novamente destas sobre as suas vidas.
Estamos cientes de que esta é uma doença que afeta a autonomia das pessoas e com uma elevada taxa de incapacidade psicossocial. No entanto, sabemos, de igual modo, que quanto mais cedo esta é identificada e quanto mais cedo a ajuda especializada é alcançada, maior é a probabilidade de prognóstico e sucesso no futuro destas pessoas. Sabemos, com propriedade, que a recuperação (clínica e pessoal) é possível! As pessoas podem atingir o recovery com este tipo de perturbação, podendo sentir-se novamente úteis na sociedade, quer a nível profissional, quer educacional, familiar ou outros.
Qual o papel da família e amigos neste percurso? Devem estes serem incluídos no tratamento?
Até ao momento uma das grandes fragilidades do nosso sistema nacional de saúde (que inclui o SNS e o setor convencionado/social/privado) na saúde mental tem sido aquilo que se chama de “sistema de porta rotativa”. Quer isto dizer que é habitual encontrar nos relatos das pessoas com esquizofrenia e seus familiares/cuidadores o facto de após o primeiro episódio psicótico terem que andar de porta em porta à procura de respostas e ajuda, sendo que, com o avançar do tempo muitas destas pessoas acabam por cair no que abordei na questão anterior – desemprego, perda de autonomia (tornam-se dependentes de elementos da família/cuidadores informais), incremento de incapacidade psicossocial, estigma, perda de ligação com a comunidade, vida social, amigos, etc.
Ora, quando se inicia um processo de reabilitação, em que a pessoa com experiência de doença mental grave é devidamente incluída numa ótica não prescritiva de intervenções e soluções (ou seja, é envolvida enquanto agente determinante no seu processo), torna-se óbvio que a família e a rede de suporte social se tornam determinantes para uma devida recuperação clínica e pessoal, assim como, reinserção a vários níveis.
Se com o avançar do tempo a tendência é o aumento da tensão com os familiares e a diminuição a 0/1 amigos, pode-se inferir com propriedade, que estes – familiares e amigos - são dois pilares/fatores determinantes no sucesso da reabilitação e reinserção destas pessoas, aliás quase diria de qualquer reabilitação, quer se tenha um problema de saúde mental ou não.
Qual o objetivo maior do tratamento para a esquizofrenia? Sei que esta pergunta é muitas vezes repetida, mas o doente com esquizofrenia pode ter uma atividade profissional e uma vida perfeitamente normal se tratado?
Se há algo de positivo que podemos retirar como conclusão do aparecimento da pandemia SARS-COV-2 COVID-19 nas nossas vidas é o facto de se ter tornado óbvio que não podemos/devemos dissociar a pessoa do seu contexto, algo que as evidências científicas já há muitas décadas haviam comprovado.
O sucesso da superação desta doença depende muito de caso para caso e depende sempre de muitos fatores, nomeadamente, e indo ao encontro da vossa questão, da sociedade em que vivemos estar ou não sensível e direcionada para a inclusão destas pessoas e dos seus cuidadores de uma forma verdadeiramente justa, equitativa e dignificadora dos seus direitos, liberdades e garantias!
Sim, estas pessoas – em muitos casos e dependendo do nível de autonomia e incapacidade psicossocial que tenham – podem voltar a ter um controlo novamente sobre as suas vidas a todos os níveis – profissional, familiar, educacional, social, pessoal. No entanto, aqui não podemos apenas dizer que depende deles!
Acredito que também as famílias tenham sentido bem o impacto do confinamento. Para elas, que estratégias deviam ser adotadas para aliviar o peso da doença dos seus familiares?
Sim, o impacto da pandemia na saúde mental das pessoas, com ou sem antecedentes de doença mental, é hoje uma realidade científica. Para os que não tinham antecedentes, assistimos a um incremento no número de quadros clínicos na área da ansiedade, depressão e problemas de desenvolvimento (esta última, mais nas crianças e jovens). Para os que já apresentavam uma doença mental grave, assistimos, na maioria dos casos, a um exacerbamento inevitável da sintomatologia que já tinham, onde acresceram os constrangimentos e dificuldades que já falei anteriormente e que, no fundo, todos sentimos na pele.
Como diminuir a carga nos familiares/cuidadores? Há medidas que são estruturais e dependem dos organismos competentes na área da saúde, segurança social e justiça e que dependem sempre de quem nos governa – aqui, é urgente a implementação com autonomia do Plano Nacional para a Saúde Mental - e há medidas que podem ser tomadas pela estrutura familiar desde já: não ter estigma, aceitar a doença como um processo, procurar ajuda profissional e/ou estruturas na sociedade já existentes na sua área de residência, nunca falhar na medicação dos seus filhos para não descompensarem, criar rotinas próprias (hora de levantar, hora de descansar), alimentação equilibrada, retirar tempo para si mesmos no que concerne à sua atividade pessoal, profissional, recreativa e/ou de valorização pessoal.
Considera que as famílias conseguem ter tempo para se afastar desta realidade e ganhar forças?
Não, por isso é que falo que há medidas que são estruturais, ou seja, umas tem ainda que ser criadas e outras disseminadas no terreno por todo o território de forma equitativa e racional. Uma das medidas, no que concerne às famílias, que teria todo o sentido seria a da criação de respostas de descanso para o cuidador (não existem no nosso país). Depois, se existissem equipas e respostas clínico-comunitárias no número recomendado pelas instâncias internacionais competentes e previstas no plano nacional para a saúde mental, tudo facilitaria a vida dos familiares e/ou cuidadores informais que não teriam que ficar “fechados” em casa a gerir flutuações da saúde dos seus entes queridos muitas vezes num silêncio e isolamento cortante.
Neste sentido, se um familiar sentir que não aguenta mais, a quem deve pedir ajuda?
Devem começar pelo terapeuta de referência por excelência, o médico que acompanha o seu filho(a). Outros técnicos especializados que também o façam. Devem procurar ajuda junto das estruturas que já existem na comunidade (na sua área de residência/região) – por exemplo, a RECOVERY IPSS, no Distrito de Braga (adultos)/Região Norte (Infância e Adolescência). Se tiverem algum problema em encontrar estruturas e ou respostas especializadas (infelizmente, são ainda em número reduzido e insuficiente) podem sempre contactar o Programa Nacional para a Saúde Mental da Direção-Geral de Saúde, o SNS24 (fundamental em tempos de pandemia) ou até uma instituição especializada, como por exemplo, a RECOVERY IPSS da qual sou presidente – ver mais em www.recovery.pt – que podemos apoiar na procura dessa solução junto dos organismos competentes públicos e/ou convencionados, assim como, federativos. O importante é passar a mensagem que devem procurar ajuda, sempre!
Quais os principais erros que se cometem, de um modo geral, ao lidar com estes doentes e estas famílias? O que é que todos deveríamos saber para que não se sintam à margem?
Como em tudo na Vida, não é só na Saúde Mental, um dos principais problemas reside no facto de teimarmos em tratarmos da mesma forma tudo e todos. Não, a verdadeira inclusão nasce da ideia de equidade. Equidade é diferente de igualdade. E a verdadeira equidade significa tratar de forma “igual” o que é “diferente”. Todos somos seres humanos (aqui iguais), todos temos direitos, liberdades e garantias que tem que ser respeitados (aqui precisamos de mais recursos para sermos todos “iguais”).
No âmbito deste tema que mensagem gostaria de deixar?
O recovery de pessoas com diagnóstico de esquizofrenia é possível de ser alcançado. Mediante o grau de autonomia e incapacidade psicossocial, é possível que muitos possam ganhar novamente o controlo sobre as suas vidas e alcançar novamente momentos de felicidade e realização pessoal, profissional, familiar e social.
Como diria Albert Camus “a verdadeira generosidade para com o futuro consiste em dar tudo ao presente”. O ser humano não é uma ilha isolada do resto do mundo, procure ajuda, sempre! Não estão sozinhos neste processo.