Testemunho

Esquizofrenia: doentes e familiares

Atualizado: 
18/05/2021 - 12:46
«O tipo não sabe o que diz! Ele está paranoico! É esquizofrénico!» Certamente o leitor conhece estas expressões. Quantas vezes já as ouviu? Quantas vezes as pronunciou?

De facto, “esquizofrenia”, “paranoia” são duas palavras que foram vulgarizadas no atual discurso. Vivemos numa época e numa sociedade em que tudo e todos parecem estar “paranoicos” ou padecendo de “esquizofrenia”. Como duas armas de arremesso, quer se trate de temas políticos, económicos ou sociais, quer se trate de futebol, da educação ou da saúde, estas palavras são utilizadas para criticar, atacar ou ofender, na medida em que são portadoras do estigma produzido no seu contexto de origem: a saúde mental com o seu catálogo de doenças e o modo como todas elas são encaradas pela sociedade em geral.

Porém, a vida encarregou-se de nos ensinar o verdadeiro significado de “esquizofrenia”, bem como os diferentes tipos ou estados de uma das doenças mentais mais profundas-

Como tudo começou

Foi no dia 2 de novembro de 1994. Na tarde desse dia, fui chamada, com urgência, por alguns vizinhos que me deram conta do estranho comportamento que o meu filho – então rapaz de 22 anos – revelava desde o dia anterior.

Chegada a casa deparei-me com uma pessoa alterada, andando de um lado para o outro como um animal enjaulado, gritando e discutindo com alguém completamente invisível ou com os locutores e personagens que surgiam na TV. Todos eram acusados de mentirem, de o perseguirem, de quererem jogar com ele para lhe fazerem mal. Num discurso sem nexo, fantasioso, falava-nos de um jogo que só ele conhecia! Todas as tentativas para o acalmar e chamar à razão fracassaram.

Seguiram-se as piores 48h da nossa vida, recheadas de episódios rocambolescos e dramáticos à medida que tentávamos aceder aos serviços de psiquiatria do SNS. De hospital em hospital, de médico em médico, de injeção em injeção, não queríamos acreditar no que víamos. Desesperada, só murmurava: estamos no final do séc. XX! Não estamos na Idade Média!!!!

No dia 4 de novembro, pelas 4 horas da tarde, o meu filho, completamente dopado, mais parecendo um farrapo humano, foi internado no hospital psiquiátrico da zona a que pertencia a sua residência.

Chamada ao gabinete do médico, foi-nos comunicado, um diagnóstico incompreensível do qual apenas registamos a palavra “esquizofrenia”.

Esquizofrenia, doutor? O doutor está a dizer-me que o meu filho é esquizofrénico? – perguntei surpreendida. Seguiram-se mais algumas explicações que mal ouvíamos tal era o estado em que ficámos.

Se não estávamos preparados para enfrentar o que tínhamos acabado de viver nas últimas 48h, muito menos estávamos para as semanas, meses e anos que se seguiram.

A Descida ao Inferno

De crise em crise, de internamento em internamento, de hospital em hospital, de médico em médico, de medicamento em medicamento, de convalescença em convalescença só pedíamos que nos ajudassem.

Mas, sozinhos, sem qualquer apoio, tivemos de aprender a lidar com um SNS que não assumia a saúde mental; sozinhos, ficamos a saber que o tratamento dos doentes mentais, com raras exceções, estava entregue a instituições seculares, que continuavam a trabalhar com os mesmos métodos, terapias e medicamentos dos seus primórdios. Ali fechavam-se os doentes mentais afastando-os da família e sobretudo da sociedade; sozinhos, descobrimos que as altas não significavam cura, mas uma longa convalescença, sem fim à vista, onde era preciso vigiar a toma da medicação, tentar reverter o dormir, comer e não fazer nada e estar atentos aos sintomas das recaídas que foram acontecendo com alguma frequência.

De boas intensões o inferno está cheio

Os anos foram passando! O meu filho foi envelhecendo sem nunca recuperar e com ele envelheciam os pais sempre em busca das alternativas tão prometidas por decretos, despachos e portarias publicados no âmbito do Plano Nacional de Saúde Mental, mas que nunca conseguiram saltar para fora do papel.

O ano de 2012 começou com mais um surto psicótico e um novo internamento. Porém, ao contrário dos anteriores, passados que foram 15 dias, mais “descompensado” e mais alterado do que quando entrara, o meu filho recebeu alta. Não era possível estar hospitalizado mais tempo. Estavam, então, em curso as diretrizes do Plano Nacional de Saúde Mental (2007-2016) que preconizavam um processo de desinstitucionalização dos doentes mentais. Metendo tudo no mesmo saco, - doentes que viviam há décadas nos hospitais psiquiátricos e doentes que precisavam de tratamento hospitalar - o Plano preconizava, sem atender às especificidades das doenças mentais, curtos períodos de internamento hospitalar, após os quais o doente deveria regressar ao seio da família, continuando o tratamento em instituições a nível comunitário.

A ideia até parece boa! Mas onde estavam essas instituições? A nível nacional nunca foram implementadas por falta de verba, embora se possam encontrar, aqui e ali, alguns exemplos de iniciativa privada ou municipal. É nelas que as famílias encontram apoio, aconselhamento e orientação. É nelas que os doentes mentais profundos quebram a rotina do Dormir, Comer e não Fazer Nada. É nelas que se ensaiam os programas de recuperação e de inserção na sociedade.

Mas o seu papel só será eficaz se espalhadas por todo o território nacional, inseridas e financiadas no âmbito do SNS para darem continuidade aos tratamentos hospitalares potencializando, desse modo, a recuperação.

Autor: 
Margarida Montenegro - Cuidadora informal (familiar) de um doente com esquizofrenia em tratamento na Recovery IPSS
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
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