“Muitas vezes refugiava-me no meu mundo secreto de forma a esconder obsessões e rituais”
Sabendo que as pessoas com Perturbação Obsessivo-Compulsiva (POC) podem manifestar uma série de sintomas que causam tensão, medo, culpa e ansiedade, interferindo nas atividades da vida diária, no trabalho e nas relações, começo por lhe perguntar quais a principais manifestações da doença? Que idade tinha quando surgiram os primeiros sintomas? No seu caso, como evoluiu esta doença? De que forma começou a condicionar o seu dia-a-dia?
Desde muito jovem que associo pensamentos, medos e dúvidas à doença. Já na infância era assaltada por medos de morte de familiares, o que gerava uma grande ansiedade. É um medo comum na infância, mas em mim assumia uma importância exacerbada, provocada pela doença, o que gerava em mim uma enorme e prologada ansiedade com pensamentos recorrentes, ruminantes, persistentes e limitativos.
Pelo que me lembro, foi no início da adolescência que comecei a adotar rituais compulsivos como forma de dissipar essa ansiedade, que era imensa. Logicamente, estes eram desajustados, tal como os pensamentos, e tinha consciência disso.
Os sintomas de superstição/pensamento mágico foram os primeiros a surgir, em que a doença me fazia crer que realizando determinados rituais estereotipados e repetitivos (rezas silenciosas, bater na madeira e repetir frases sempre da mesma forma, não escrever a preto, …) seria capaz de evitar o que os meus pensamentos tinham premunido ou os medos que me assolavam.
Mais tarde, começaram a surgir os sintomas de verificação. Ainda no início da juventude, revia trabalhos vezes sem conta para confirmar que não faltavam páginas e, mais tarde, já na minha atividade profissional, revia todos os passos que percorria. A dúvida sobre os atos que tinha praticado nunca era refutada e a ansiedade, apesar das compulsões de verificação, mantinha-se elevada.
Por volta dos meus 28 anos, altura em que engravidei da minha filha mais velha e após um incidente no trabalho, comecei a padecer de sintomas de contaminação. Sei que normalmente julgam que o doente tem medo de ser contagiado por determinadas doenças, mas não é só. Era assolada por medos de ser contaminada com detergentes, pó, terra e partículas nas superfícies, que a doença me fazia ver sempre sujas. Na verdade, o que me lembro é de me sentir sempre suja, o que me incitava a compulsões de lavagem repetidas das mãos, cada vez com produtos mais agressivos para a pele, e de superfícies com que tinha contato. Cheguei a um ponto em que sair de casa se tornou incomportável, porque via o mundo como um lugar sujo e ameaçador.
Todos estes sintomas eram vividos de uma forma egodistónica, ou seja, estranhos ao Eu. Sabia bem que eram exagerados e desajustados. Por isso mesmo escondia-os, sentia vergonha e disfarçava os rituais para que ninguém pudesse notar.
Todos estes pensamentos encadeados uns nos outros, repetitivos, ruminantes e que resistiam a sair da consciência, faziam-me viver numa grande ansiedade, exaustão e roubavam muito tempo aos meus dias.
Sabendo que o doente, nem sempre consegue perceber que precisa de ajuda, como se deu o “clique”? Em que momento decidiu procurar ajuda e como recebeu este diagnóstico? Foi fácil aceitar?
Sempre negava a mim mesma a doença, apesar de por volta dos meus 20 anos, já a frequentar a licenciatura de Medicina, me ter apercebido da existência desta doença e do diagnóstico que deveria fazer a mim mesma. Negava os sintomas, até porque os sentia como meus e não de uma doença.
Costumo usar uma analogia para expressar como se sente a doença: quando me doi um joelho digo: “ele doi”; quando tenho pensamentos intrusivos (que não são meus, são da doença) digo: “eu penso assim”. Pois, mas eu não penso assim, quem pensa assim é a doença, mas eu não conseguia aceitar isso, achava que os pensamentos eram meus e tinha vergonha, quer dos pensamentos quer dos rituais a que a doença me obrigava.
Fui levada a procurar ajuda médica pela primeira vez aos 29 anos, na altura da gravidez da minha filha. Nessa altura, a doença exacerbou-se muito e tornou-se visível. O meu marido ajudou-me a procurar acompanhamento médico. Fiz medicação e psicoterapia e melhorei. Claro que contei ao médico e à psicóloga apenas os sintomas de contaminação que se encontravam exacerbados na altura e continuei a esconder o “meu segredo”, não referindo os rituais de verificação e pensamento mágico.
Após 2 anos de medicação e melhoria tive alta da consulta por considerarem que estava curada e que teria sido um episódio de POC associado à gravidez, o que é frequente. Esse facto fez com que aceitar a doença, nessa altura, tenha sido relativamente fácil. Atribuí a culpa não a mim, mas às hormonas da gravidez e, como melhorei, julguei ter-se tratado apenas de um episódio. A nossa mente sabe muito bem mentir a si própria!!
Fiquei então de novo por minha conta. Seguiram-se uns anos muito bons, em que o equilíbrio entre a atividade profissional e o lazer, as relações saudáveis que mantinha com o meu marido e amigos e mais um filho a caminho, me davam a estabilidade de que precisava para controlar melhor a ansiedade e a POC. Conseguia manter a doença sob controlo e lidava com ela recorrendo a algumas ferramentas que tinha apreendido durante a psicoterapia.
Em 2010 assumi um cargo de Coordenação. A responsabilidade aumentou, a ansiedade subiu, o tempo que dedicava ao trabalho era excessivo e tudo se descompensou.
Em 2012 caí numa depressão profunda pela exaustão a que a doença, que se tinha agravado em todas as suas vertentes, me conduziu. Cheguei a estar cerca de 24 horas tomada pela POC, entre pensamentos ruminativos, rituais compulsivos e até em sonhos visualizava o que me preocupava. Aí fui conduzida por uma amiga e o meu marido à Psiquiatria.
Aqui foi mais difícil aceitar a doença que foi explorada em todas as suas vertentes. Foi difícil confessar todos os sintomas, todas as crenças da doença, todos os medos, todos os rituais. Sentia vergonha pelo que confessava e foi difícil aprender a lidar com o facto de as obsessões não serem pensamentos normais nem do “Eu”. Foi muito difícil aceitar, mas fui fazendo o caminho pela psicoterapia e estudei muito sobre a POC, o que me ajudou a conhecer melhor a doença e, assim, vê-la como algo externo a mim.
Tendo em conta que as manifestações clínicas da Perturbação Obsessiva Compulsiva começaram cedo, hoje consegue identificar o que porquê de ter desenvolvido esta perturbação?
A Perturbação Obsessiva Compulsiva (POC) tem uma etiologia multifatorial. Identifico, na minha história familiar, casos de Distúrbio de Ansiedade, de Perturbação Obsessiva Compulsiva, Tiques e Depressão, o que me faz crer existir uma certa predisposição hereditária. Fatores ambientais, com certeza, estiveram implicados. Copiar comportamentos que via nos mais velhos, na tenra infância, assistir a formas de reação a desafios da vida e alguma rigidez de comportamentos poderão ter despoletado algumas crenças e comportamentos.
Posteriormente, as imposições que colocava a mim mesma para tentar anular qualquer hipótese de erro, com a prática de compulsões que tinham como objetivo diminuir a ansiedade das obsessões, foram alimentando a doença.
Como é que esta doença se relaciona com a depressão? No seu caso, o que despoletou a doença depressiva? Que episódios recorda?
O primeiro episódio depressivo de que me lembro de ter tido aconteceu por volta dos meus 20 anos. Sinto que o que desencadeava os sintomas depressivos era sempre a ansiedade e a POC. Sentir-me constantemente invadida por pensamentos estranhos recorrentes, medos repetitivos e desgastantes que giravam na minha mente, encadeados e constantemente, e os rituais compulsivos rígidos a cumprir conduziam-me a uma grande exaustão e desgaste, afastando-me da vida e do mundo.
A minha existência passava a reger-se pela doença, pela ansiedade e ficava fechada em mim, como se a vida se passasse em segundo plano, não vivia em pleno. Isolava-me das relações e das atividades, vivia nos meus pensamentos, era arrastada para um mundo de solidão, tristeza, falta de energia e vontade… isto é a depressão.
No seu caso, a doença tornou-se resistente ao tratamento. Para quem não faz ideia o que é viver com uma depressão, como é que esta impactou a sua vida?
Até aos meus 38 anos fui tendo alguns episódios depressivos autolimitados e recorrendo a medicação resolvia-os em alguns em meses. Ia disfarçando a doença, quer a POC, quer a ansiedade, quer a Depressão, o que fazia com que tivesse de viver num mundo de luta constante, no meu interior, sem ninguém notar. Vivia afligida pelos sintomas da doença e tentava encontrar o equilíbrio que me permitisse manter o meu “segredo”.
Esta luta prolongada teve as suas consequências e aos 38 anos caí numa depressão profunda. Apesar de todos os esforços da equipa médica, com vários esquemas terapêuticos e eletroconvulsivoterapia, e de psicólogos que me acompanharam, estive cerca de 3 anos numa depressão profunda. Desses anos tenho apenas memórias retalhadas, tipo fotográficas. As memórias desses tempos são escassas. Sei que passava a maioria do meu tempo isolada, exausta, deitada ou sentada e absorta da realidade.
Recorro a um excerto do meu livro, “Na Loucura da Dúvida”, para tentar explicar o que é a depressão:
“E sucumbo, sucumbo ao cansaço, à dor, ao desespero de obsessões constantes, cada vez mais intensas, frequentes e absorventes.
Sucumbo e deixo de lutar porque as forças escasseiam e a desesperança impõe-se.
Sucumbo e deixo que a doença me leve para um lugar à parte, sem tempo e sem palavras. Um lugar de um escuro envolvente, um recanto negro, onde pairam todos os fantasmas, onde respondo a todos os medos, onde cada memória me ataca, onde cada pensamento é um ogro, verdadeiramente assustador… e onde vivo isolada do resto do mundo!
Nesse mundo estou tão só…
Curiosamente, antes não tinha medo da solidão!! Um livro e um sonho, por vezes, mais sonhos que livros, eu bastava-me e preenchia-me, eu era a minha melhor companhia. Mas, a doença rouba-me o sonho, rouba-me a risada fácil, rouba-me de mim!! Desespero a tentar encontrar-me nesse mundo, tenho saudades de me ter, quero o meu aconchego, recordo a minha alegria e anseio o meu sorriso! Sinto-me tão só, tão só sem mim!!
Nada quero, … nada desejo, … nada espero!
Como se me tivessem aberto os olhos, para o verdadeiro vazio da existência humana. Um vazio… mais do que de sentimentos, um vazio de vontades, uma ausência de desejos, um deserto de expectativas, um vácuo asfixiante!
A vida sem finalidade e sem propósito! A contradição de sentir o vazio!
Uma angústia que disseca por dentro, mói os ossos, dói nos músculos, enfraquece o corpo... e mata a alma!!
Esvaziada! Fico esvaziada de mim! Como se esse vácuo me tivesse sugado a carne!!
Não há agrado, já nada tem sabor, arrasto-me por uma vida que vivo por viver.
Nesse mundo vivo profundamente cansada, sinto-me exausta de existir!! Cada inspiração é um esforço, cada pestanejar é uma luta, cada levante uma vitória contra a vontade imensa de me deixar ir!! O desejo de deixar de sentir angústia, tristeza e dor. Por fora pareço anestesiada e distante, mas por dentro, vivo um rebuliço de medos e de dor… um desespero sem fim!
E bramo por socorro através de uma lágrima que cai, pois, as forças escasseiam, para contar ao mundo, como é o recanto infernal onde vivo!!”
Como é que a doença condicionou as suas relações?
A doença (a POC e a Depressão) conduzem ao isolamento. Muitas vezes refugiava-me no meu mundo secreto de forma a esconder obsessões e rituais. Movida pela vergonha, reflexo da forma estranha como o Eu vivenciava os sintomas, adotava estratégias para esconder pensamentos e atos.
A própria depressão, devido à falta de energia e de vontade que a caracteriza, condicionou-me a um isolamento intenso em que recusava convites e fechava-me por completo no meu mundo.
Tentava, no entanto, de toda a forma poupar os meus filhos. Fazia um esforço para estar com eles o máximo tempo que conseguia, exibir um sorriso e esconder as compulsões. Mas nem tudo era possível de esconder e, claro, apercebiam-se do meu cansaço. E, por mais que tentasse, não resistia, por vezes, a tentar que cumprissem determinados comportamentos de forma a ser-me possível suportar a ansiedade provocada pela POC. Por exemplo, sabiam que quando chegava a casa do trabalho só me podiam abraçar após ter tomado banho e trocado de roupa.
A nível profissional, a POC e a Depressão conduziram-me a uma profunda incapacidade, tendo estado muito tempo sem ser capaz de trabalhar.
Em retrospetiva, qual ou quais os momentos mais difíceis pelos quais passou?
Quando se sofre assim é difícil definir momentos. Dias melhores intercalavam-se com dias em que o desespero se apoderava mais de mim, mas a verdade é que, em retrospetiva, a POC e a Depressão são um contínuo de dor e desesperança oscilantes. Passei anos em profundo sofrimento provocado pela dúvida, ideação suicida, pelo debate interno e por viver num mundo tomado pelos meus pensamentos.
Relativamente ao tratamento da POC, em que consiste?
O tratamento tem duas vertentes essenciais: a Intervenção Farmacológica e a Psicoterapia. Dependendo da gravidade da doença, os fármacos e a sua dose variam, mas a psicoterapia é a base. É importante que o doente entenda o que é a POC, as suas rasteiras, que os pensamentos (obsessões) não são pensamentos normais nem do “Eu” e que não devem ser analisados ou esmiuçados, como suportar a ansiedade inicial que impele à compulsão e como não a executar, uma competência que é treinada e aprendida através do esquema de intervenção Exposição/Prevenção da resposta.
Para casos graves e renitentes ao tratamento psicoterapêutico e farmacológico, há uns anos, foi aprovado para o tratamento da POC o procedimento neurocirúrgico: Estimulação Cerebral Profunda (Deep Brain Stimulation – DBS), com excelentes resultados.
Hoje tem a POC controlada? Que estratégias utiliza para não se deixar dominar pela doença?
Cumprir o esquema terapêutico, manter o plano de consultas com o Psiquiatra que me acompanha e colocar em prática todas as estratégias que fui aprendendo durante o processo de psicoterapia, como: não dar importância a pensamentos automáticos sentidos como estranhos ao “Eu” e que invadem o pensamento normal; adiar o pensamento (não me debater com as obsessões e enganá-las. Pensar, por exemplo: “eu sei que és importante, já penso em ti daqui a meia hora, agora vou descansar um bocadinho!!”. Desta forma, as obsessões vão perdendo a sua força); distrair-me de forma a evitar entrar no ciclo ruminativo de pensamentos; evitar responder à ansiedade gerada pelos pensamentos, sabendo que ao realizar as compulsões irei reforçar o aparecimento desses mesmos pensamentos (Obsessões); praticar exercício moderado; equilibrar tempos de trabalho e lazer; manter ritmos de sono regulares; ter momentos dedicados a relaxamento.
Que mensagem gostaria de deixar no âmbito deste tema, sobretudo quando ainda é tabu falar sobre doença mental?
A doença mental, em geral, está envolvida num grande estigma e, na minha opinião, apenas por um motivo: MEDO. Medo do desconhecido, medo da crença de serem doenças incuráveis e às quais não se pode proporcionar alívio, medo de se perder aquilo que mais nos define: a nossa identidade. Acredito que só se poderá aceitar e compreender se procurarmos conhecer… ENTENDER PARA ACEITAR!!!
Pelo que acho que a única forma de quebrar este mesmo estigma é falando da doença mental: dar a conhecer os seus sintomas, as formas de ajuda, que tantas vezes passam pelos conviventes com o doente, os progressos enormíssimos da medicina, principalmente neste último século, que já tanto alívio e cura proporcionam aos doentes, mostrar que são doenças como outras quaisquer e que a ajuda médica e psicoterapêutica têm resultados muito bons.
Acredito que todos nós, sem saber, convivemos com pessoas que padecem de doença mental e que vivem num sofrimento enorme, no silêncio da sua vergonha e da não aceitação por parte da sociedade.
Que se quebre este estigma! Que se quebre esta vergonha!… Aceitar e conhecer… para ajudar!