Dia Mundial da Hemofilia assinala-se a 17 de abril

Hemofilias em 2021

Atualizado: 
16/04/2021 - 12:46
As hemofilias são doenças hemorrágicas congénitas que se devem a diminuição ou ausência do fator VIII (FVIII) na hemofilia A (HA), ou de fator IX (FIX) na hemofilia B (HB). Estes fatores da coagulação possibilitam uma hemostase adequada, ou seja, permitem parar uma hemorragia após um traumatismo ou uma intervenção cirúrgica. Na hemofilia, o tampão plaquetário formado não é estabilizado pela rede de fibrina, pelo que as pessoas sangram mais tempo que o normal, mesmo após traumatismos mínimos.

As hemofilias devem-se a alterações moleculares nos genes F8 e F9 que codificam o FVIII e o FIX, respetivamente. Ambos os genes se situam no cromossoma X, pelo que as hemofilias são quase que exclusivas do sexo masculino, sendo a HA responsável por cerca de 80% dos casos. A HA, classicamente descrita com uma incidência de 1/5000 de recém-nascidos (RN) do sexo masculino, tem uma prevalência estimada ao nascimento de cerca de 25 casos por 100 000 RN do sexo masculino. De igual modo se pensa atualmente, que o número de pessoas com hemofilia em todo o mundo seja superior a 1 milhão. Em Portugal, a prevalência estimada de hemofilia A é 15/100 000 indivíduos do sexo masculino e de hemofilia B é de 4/100 000 indivíduos do sexo masculino.

Deve-se suspeitar de hemofilia se equimoses fáceis de aparecimento precoce na infância, hemorragias espontâneas (particularmente nas articulações e nos músculos) ou hemorragia excessiva após trauma ou cirurgia. Muitas das crianças com hemofilia não apresentam sintomas até à idade em que começam a caminhar. Nas hemofilias mais leves, as pessoas podem não apresentar hemorragias até experimentarem um trauma ou cirurgia. O aparecimento precoce de hemorragias articulares em crianças muito pequenas, é um indicador de hemofilia grave.

As hemartroses (hemorragias articulares) principalmente, e as hemorragias musculares, são as hemorragias mais frequentes e mais características da hemofilia, representando cerca de 90% de todas as hemorragias na doença grave. A gravidade das manifestações hemorrágicas está de acordo com o nível do fator da coagulação, sendo que na hemofilia grave as hemorragias são espontâneas, na moderada a leve, as hemorragias surgem predominantemente após trauma ou cirurgia.

Ainda atualmente, a hemofilia é uma doença crónica e muitas vezes incapacitante, devido à recorrência da hemorragia na mesma articulação (articulação alvo) ao longo do tempo, o que pode levar a lesão progressiva e irreversível da articulação e ao desenvolvimento de artropatia, que se caracteriza por hipertrofia sinovial, lesão da cartilagem, perda do espaço articular e alterações ósseas. A artropatia hemofílica, associada a rigidez articular e dor crónica, que condicionam limitação da mobilidade e consequente atrofia muscular, é, pois, causa importante de morbilidade em doentes com hemofilia grave; a hemofilia é, portanto, não só uma doença hemorrágica, como também uma doença musculoesquelética.

O grande passo qualitativo no tratamento da hemofilia foi a disponibilidade de tratamento substitutivo, sendo que ainda atualmente, o tratamento se baseia na administração de concentrados de fatores VIII ou IX, quer para o tratamento do episódio agudo da hemorragia (tratamento on demand, ou a pedido), quer para prevenir as hemorragias pela administração regular dos concentrados de fatores (profilaxia). A profilaxia tem como objetivo transformar uma hemofilia grave em não grave e consequentemente prevenir as hemorragias articulares e a lesão articular. Atualmente, a profilaxia é considerada o tratamento de eleição da hemofilia grave, defendido pela Federação Mundial de Hemofilia e pela Organização Mundial de Saúde, e tem sido generalizada a todos os grupos etários.

Cada vez mais a profilaxia é ajustada às necessidades individuais de cada pessoa (profilaxia personalizada) com o objetivo de prevenir as hemorragias espontâneas de forma eficaz e melhorar a adesão ao tratamento. A profilaxia personalizada deve considerar o padrão hemorrágico, a condição músculo-esquelética, a atividade física diária, os objetivos e desejos individuais assim como a farmacocinética de cada pessoa com hemofilia.

O tratamento no domicílio permite o acesso imediato aos concentrados de fator, otimizando o tratamento on demand precoce e um mais eficaz controlo da hemorragia, assim como permite também a introdução de profilaxia, sobretudo em pessoas que vivem longe dos centros de hemofilia. São fundamentais os programas de ensino sobre administração do tratamento pela pessoa com hemofilia ou familiares, assim como sobre a necessidade de cumprir e melhorar a adesão ao tratamento.

A possibilidade do tratamento em casa e a profilaxia, permitem a redução do absentismo escolar e laboral e melhoram substancialmente a qualidade de vida das pessoas com hemofilia e suas famílias, permitindo mesmo na doença grave, uma vida praticamente normal.

Nos últimos anos, assistiu-se a avanços significativos no tratamento da hemofilia, pelo aparecimento de tratamentos substitutivos de ação prolongada, de tratamentos não substitutivos (modificadores da ativação ou inibidores de anticoagulantes naturais) ou de terapia génica. Em Portugal, encontram-se disponíveis os fatores de semivida prolongada que permitem diminuir o número de infusões dos fatores VIII/IX e em simultâneo melhorar a proteção articular em relação às hemorragias espontâneas e subclínicas, e um anticorpo monoclonal mimético do FVIIIa, usado na profilaxia de pessoas com hemofilia A e inibidores.

Um outro aspeto importante no tratamento destes doentes foi a implementação de centros especializados no tratamento de hemofilia, orientados segundo o conceito de cuidados integrais, ou seja, de prestação de cuidados globais e articulados por equipas multidisciplinares. Todos estes avanços permitem que muitas crianças nascidas com hemofilia possam usufruir de uma vida muito mais ativa e saudável, e que possam ter uma esperança média de vida semelhante à esperança de vida da população masculina para a mesma faixa etária.

Autor: 
Dra. Sara Morais - Coordenadora do Centro de Coagulopatias Congénitas do Centro Hospitalar Universitário do Porto
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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