“Em Portugal, a Saúde Mental continua o parente pobre”
Em que ano nasceu a FamilarMente e o que impulsionou a sua criação?
A FamiliarMente, Federação Portuguesa das Associações das Famílias de Pessoas Com Experiência de Doença Mental, surgiu por iniciativa dum grupo de dirigentes de Associações de Famílias de Pessoas com Doença do Foro Mental, sedeadas em várias regiões do país, com o objetivo de criar uma federação de associações, de âmbito nacional, que desse voz às famílias e de forma organizada, na defesa dos seus direitos e para contribuir para a melhoria das condições de vida, de saúde e de bem estar, das próprias e dos seus familiares portadores de doença mental. A consolidação do projeto da federação, levou cerca de 1 ano e meio e implicou a realização de reuniões mensais, em Lisboa, com a presença de representantes das Associações que foram responsáveis pela elaboração dos estatutos, formalização dos registos preliminares e organização da documentação inerente às doze Associações, membros fundadores e que subscreveram a outorga da escritura de constituição da FamiliarMente e respetivos estatutos, em 31 de março de 2015.
Quantas associações integram a Federação?
À data da constituição e outorga da escritura, eram 12 Associadas e membros fundadores. Presentemente, são 14 Associações filiadas e sedeadas em vários distritos: Braga, Coimbra, Guarda, Lisboa, Portalegre, Porto e Santarém.
Tendo em conta a sua missão, que atividades têm vindo a desenvolver desde que foi criada?
A atividade que a FamiliarMente desenvolve em consonância com os objetivos estatutários e os planos de atividade anualmente aprovados em assembleia geral, para em representação das Associações de Famílias filiadas, exercer o direito de participação pública em saúde mental, na defesa dos direitos e legítimos interesses das famílias, enquanto cuidadoras informais e contribuir para a melhoria das condições de vida, de saúde e bem estar, dos seus familiares com doença mental, sem voz ativa e estigmatizados pela sociedade.
Desde a primeira hora, a FamiliarMente apresentou-se à sociedade e aos órgãos de soberania e de governação, solicitando audiências e reuniões, para expor as necessidades sentidas pelas famílias, em matéria de cuidados e respostas de saúde mental e medidas de apoio aos cuidadores informais e, contribuir para o desenvolvimento das medidas preconizadas no Plano Nacional de Saúde Mental, cuja concretização deveria ter sido concluída no ano de 2016 e que na presente data, Março de 2021, muito ainda está por fazer. Desde a sua constituição, é ouvida com regularidade pela Comissão Parlamentar de Saúde e Comissão Parlamentar do Trabalho e Segurança Social, pelos Grupos Parlamentares dos Partidos Políticos com representação na Assembleia da República, assim como junto dos titulares das pastas da Saúde e da Segurança Social, da Direção do Programa Nacional para a Saúde Mental da Direção Geral de Saúde e da Coordenação Nacional da Rede de Cuidados Continuados Integrados de Saúde. Junto da Presidência da República, também a FamiliarMente teve oportunidade de ser recebida, em audiência concedida pela Sr. Presidente da República, em 15 de maio de 2017 e desde então, mantém contactos regulares com a Casa Civil, mantendo o Sr. Presidente da República a par da situação da Saúde Mental.
Na defesa da implementação das primeiras respostas de cuidados continuados integrados de saúde mental, a FamiliarMente lançou uma Petição Pública, em Outubro de 2016, com o título “Urgente, Orçamento e Respostas Para a Saúde Mental”, que após audições na Comissão de Saúde Parlamentar, resultou na apresentação de projetos de resolução, por parte dos Partidos Políticos do BE, CDS, PCP e PSD e que foram levadas a sessão plenária da Assembleia da República, resultando na aprovação por unanimidade, duma só Resolução da Assembleia da República, publicada em diário da república, de 11 de Agosto de 2017, com o nº 213 e que faz várias recomendações ao Governo para a execução de um vasto conjunto de medidas de saúde e de saúde mental.
Os Encontros Nacionais, são também uma atividade de relevo e muito participados pela sociedade civil, são organizados anualmente com a colaboração da Direção do Programa Nacional para a Saúde Mental da Direção Geral de Saúde. Este ano, a FamiliarMente realiza o VI Encontro Nacional, que terá lugar a 21 de maio de 2021, por via digital, subordinado ao tema “Democratização da Saúde Mental – Participação Pública em Saúde”.
No exercício do direito de participação pública em saúde, a FamiliarMente é membro efetivo dos seguintes órgãos consultivos: Conselho Nacional de Saúde (CNS); Conselho Regional de Saúde Mental da ARLVT; Comissão Consultiva para a Participação de Utentes e Cuidadores da área da Saúde Mental) CCPC-DPNSM); EUFAMI, Federação Europeia das Associações das Famílias de Pessoas Com Doença Mental; E assiste às sessões plenárias do Conselho Nacional de Saúde Mental. Integra também, Grupos de Trabalho e de Investigação, sobre temas relacionados com as boas práticas de serviço social em saúde mental, a prevalência da doença e carga e custo da doença mental grave que é suportada pelas famílias.
Participa e promove campanhas de sensibilização na promoção da saúde mental, no combate ao estigma e para a equidade e igualdade de acesso ao tratamento. Em termos de intervenção e participação em eventos científicos e similares, a FamiliarMente é convidada regularmente para abordar temas relacionados com a prevalência da doença mental, o estigma, a carga e custos da doença mental grave, o acesso a tratamento, as necessidades identificadas pelas famílias e doentes, a promoção da saúde mental, a execução do Plano Nacional de Saúde Mental. O modelo de financiamento da Saúde Mental, medidas de apoio aos Familiares, o regime de internamento compulsivo, a lei do maior acompanhado e dos direitos humanos e das pessoas com deficiência.
Nos órgãos de comunicação social, também a FamiliarMente tem participado em programas dedicados à saúde mental e concedido entrevistas, escritas e radiofónicas. Recentemente, a FamiliarMente, representada pela Presidente da Direção, foi nomeada por despachos conjuntos das Srs. Ministras da Justiça e da Saúde, membro da Comissão de Acompanhamento do Execução do Regime Jurídico do Internamento Compulsivo, triénio 2020/23 e do Grupo de Trabalho, constituído para apresentação de proposta de revisão da Lei de Saúde Mental.
De um modo geral, que diagnóstico faz da Saúde Mental do país?
Em Portugal, a Saúde Mental continua o parente pobre, sendo a área da Saúde em que o Estado menos investe e que em termos de Orçamento Geral do Estado, fica sempre com a “fatia menor”, embora todos os indicadores, inclusive os estudos da OMS, apontem para a crescente incidência e prevalência da doença mental, inclusive da doença mental grave, situação que se tem agravado desde o início da Pandemia provocada pela Covid19 e que afeta a população há mais de um ano.
Podemos afirmar que a doença mental atinge de forma direta, 25% da população e de forma indireta (as famílias), igual percentagem, pelo que deveria ser alvo de maior atenção por parte dos principais responsáveis pelas políticas de saúde e de maior investimento. A falta de execução das medidas preconizadas no Plano Nacional de Saúde Mental, cuja conclusão deveria ter aido 2016 e o alargamento e diversificação da rede nacional de cuidados continuados integrados de saúde mental, assim como, a criação de respostas para doentes mentais complexos, assegurando-lhes a continuidade de cuidados em saúde mental ao longo da vida e, o acompanhamento e apoio às famílias que assumem o papel de cuidadores de forma voluntária e sem preparação e que a atual legislação das medidas de apoio ao cuidador informal, deixa a descoberto, pois os cuidadores de doentes mentais graves e complexos, podem não sofrer de incapacidades físicas mas ficam igualmente limitados e incapacitados, a nível cognitivo e psicossocial e com necessidade de acompanhamento permanente.
Sabendo que Portugal é o segundo país com a mais elevada prevalência de doenças psiquiátricas da Europa, e que apenas 10% dos doentes recebe tratamento adequado, o que tem de mudar para cuidarmos de forma eficaz da saúde mental dos portugueses?
O acesso ao diagnóstico atempado e ao tratamento adequado, é um dos problemas que afeta a saúde mental e que urge sanar. É um “drama” vivido pelas pessoas doentes e pelas respetivas famílias que se arrasta há décadas. A iliteracia em saúde, a falta de informação sobre os cuidados e serviços de saúde mental disponibilizados pelo sistema de saúde publico (SNS) e pelas instituições do setor social convencionado, também são entraves no acesso a cuidados e respostas de saúde mental. Também a escassez de cuidados de saúde mental de proximidade, prestados por equipas multidisciplinares, que deveriam ser criadas e desenvolvidas pelo território nacional, em função do número de habitantes, continua a ser um dos entraves no acesso e na equidade ao tratamento da doença mental. Acresce ainda a desigualdade que se verifica no tratamento da doença mental grave, comparativamente ao tratamento da generalidade das doenças orgânico e funcionais, por não ser comparticipado a 100%, pelo SNS, o que também contribui para dificultar o acesso á saúde mental, prejudicando o tratamento dos doentes que por falta de recursos financeiros, deixam de cumprir o seu plano terapêutico.
Tendo em conta estes dados, e sabendo que a doença mental tem um enorme impacto socioeconómico, por que continuamos a evitar falar sobre ela? Diria que o estigma é, em parte, um dos obstáculos ao acesso à saúde?
O Estigma, continua a ser real em pleno século XXI, por medo e desconhecimento, constitui um entrave difícil de ultrapassar, sobretudo no que à inserção social e profissional respeita, quer dos doentes, quer das famílias. Muito há a fazer nesta área, por exemplo, através de campanhas adequadas e continuadas, com exemplos de sucesso, melhorando a literacia em saúde, sensibilizando a sociedade, sobretudo as gerações mais jovens, pois é um problema que levará décadas a esbater.
De um modo geral, quais são as principais dificuldades sentidas por parte das famílias do doente com doença mental grave?
As dificuldades das famílias são várias e de diferentes dimensões, como já ficou patente nas respostas anteriores. Ao nível do diagnóstico, as dificuldades de acesso e equidade aos cuidados de saúde e saúde mental.
Ao nível do tratamento e estabilização de sintomas, a falta de equidade e de acesso aos cuidados de saúde mental, aos tratamentos, farmacológicos, psicoterapêuticos e sociais, é uma realidade que urge resolver, criando equipas multidisciplinares de saúde mental, disponibilizando os fármacos para a doença grave e outras intervenções terapêuticas e psicossociais, a ser feitas de forma integrada e multidisciplinar.
Ao nível dos cuidados continuados, urge aumentar e diversificar as respostas, adequando-as às necessidades dos doentes, tendo em conta a incapacidade psicossocial e outras limitações cognitivas, decorrentes da patologia mental.
Ao nível da empregabilidade, urge criar medidas de apoio ao emprego protegido, a empresas de inserção e de apoio à criação do próprio emprego, atendendo à vulnerabilidade a que ficam expostos os doentes e à imprevisibilidade da doença.
Para os doentes mentais graves e complexos, há que criar estruturas residenciais de cuidados de continuidade, sobretudo para os doentes que deixam de ter suporte familiar.
Para as famílias, criação de medidas adequadas ao nível do cuidado que presta ao familiar e acautelar o seu descanso que deve ser periódico e, meios de sobrevivência adequados, quando é obrigada a deixar de exercer atividade profissional remunerada, para poder cuidar, acautelando os custos básicos e as despesas com a saúde.
Uma vez que falamos em doença mental grave, que patologias se enquadram nesta definição?
As famílias, não são profissionais de saúde e não saberão elencar todas as patologias mentais graves, mas sabem que gravidade das mesmas depende do acesso ao tratamento e que a sintomatologia pode agravar-se e tornar-se crónica, sem tratamento adequado. Pela experiência adquirida, as Famílias sabem que entre as doenças mais graves, estão a Esquizofrenia e Bipolaridade, pois mesmo quando sujeitas a tratamento, com o passar dos anos, os sintomas persistem e incapacitam os doentes, sobretudo ao nível psicossocial e cognitivo.
Sabendo que a FamiliarMente foi nomeada, em 2020, para integrar a Comissão de Revisão da Lei de Saúde Mental, que contributo espera trazer a esta área tantas vezes subvalorizada?
Da parte das famílias, são muitas as expectativas, por exemplo, relativas ao cumprimento dos direitos humanos, dos direitos das pessoas com deficiência, dos doentes mentais e dos utentes do SNS, ao acesso equitativo, a todos os cuidados de saúde e de saúde mental, aos cuidados continuados integrados e à continuidade de cuidados para doentes mentais complexos e sem suporte familiar, à melhoria das condições de alojamento e de assistência no tratamento em regime de internamento em unidade hospitalar, seja voluntário ou compulsivo, às medidas de apoio à recuperação global do doente e que devem incluir tratamento, estabilização, reabilitação psicossocial e, medidas de apoio à inserção social e profissional, em diversas áreas (educação, emprego, habitação, justiça, social) e para a sua concretização, implicará a reforma da Saúde Mental, o modelo de organização e financiamento, a criação duma carteira de serviços, e por fim, assegurar a efetiva participação das famílias e dos doentes, em órgãos consultivos e no acompanhamento e avaliação dos cuidados prestados.