Posição da APCP à aprovação da despenalização de morte medicamente assistida

“A morte enquanto processo de finitude não deve ser artificialmente prolongada, nem intencionalmente antecipada”

Atualizado: 
19/02/2021 - 15:30
A APCP, através do seu Grupo de Reflexão Ética, manifesta não existir na sociedade um clamor de tal premência e substância que suscite, no momento presente, a aprovação da despenalização de morte medicamente assistida, considerando que há mais formas, compassivas e integradoras de responder ao sofrimento, as quais devem preceder à supressão do sofredor.

Num momento de calamidade mundial em que os sistemas de saúde lutam pela ampliação de meios destinados a manter e a salvar vidas, a criação de um quadro normativo para a “antecipação da morte” no sistema de saúde (público, privado e social), com recurso a um de dois métodos − eutanásia ou suicídio ajudado – não se afigura, para o Grupo de Reflexão Ética da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP), possível ou oportuno face à situação pandémica que assola o país e o mundo.

A conjuntura atual obriga ao confinamento, sobrecarrega os profissionais, esgota a capacidade dos hospitais e, convém não esquecer, aliena os doentes, Covid e não Covid, das suas famílias nos momentos finais da vida; o que não se coaduna com uma alteração de tal forma substancial do processo de morte em Portugal.

Incumbir, nesta altura, os sistemas de saúde a criarem processos que requerem equipas adequadamente treinadas, recursos técnicos e administrativos e espaços com o resguardo, conforto e dignidade adequados à execução destes atos, cujo volume de pedidos ainda não se antecipa, também não se afigura viável.

No cumprimento da sua missão principal e comprometida com a sociedade de avanço dos Cuidados Paliativos (CP) em Portugal, pugnando pelo acesso equitativo de toda a população a CP de qualidade em tempo útil, o Grupo de Reflexão/APCP recomenda sim a mobilização dos decisores políticos e de toda a sociedade no combate à situação pandémica e ao cuidado a todos os doentes graves, não apenas Covid, em situação de vulnerabilidade e sofrimento proporcionando-lhes antes de mais, caso essa seja a sua vontade, um acesso efetivo a CP de qualidade em todo o território nacional.

Para promover uma tomada de decisão informada e esclarecida, de acordo com as opções da moldura legal do país, o Grupo de Reflexão/APCP considera premente aumentar os níveis de literacia sobre os CP em todas as camadas da sociedade, para que estes sejam entendidos como um direito que todos os cidadãos têm de terem um ciclo de vida vital digno, e sejam considerados uma prioridade fundamental numa sociedade que se pretende compassiva.

Para tal, afigura-se necessário reconhecer a escassez de acesso em tempo útil aos CP “aplicáveis, viáveis e disponíveis” e a sua desigual distribuição no território nacional, que o contexto atual veio agudizar, transformando os CP numa promessa constante da iniciativa legislativa que ninguém está para já em condições de cumprir.

Os Cuidados Paliativos não são uma alternativa à eutanásia, assim como o direito à vida, adjetivada de acordo com cada projeto pessoal, não espelha um direito à morte quando o sofrimento se agudiza e parece derrotado tal projeto. Há mais formas, compassivas e integradoras, de responder ao sofrimento, que devem preceder a supressão do sofredor.

Por isso, na defesa dos direitos dos cidadãos, a universalidade na provisão de CP de qualidade a quem sofre, independentemente do contexto, hospitalar ou comunitário, deve permanecer como uma prioridade. E, em altura alguma, como no momento presente, se justificou tanto o desenvolvimento dos CP, o que paradoxalmente, tem sido inversamente proporcional à expansão da atividade das equipas existentes, afastando, assim, o país de atingir a meta de provisão universal de cuidados paliativos, tal como postula a OMS.

Face às iniciativas já aprovadas na especialidade, o Grupo de Reflexão/APCP não visa deter-se sobre as fragilidades, quer do processo legislativo, quer de uma iniciativa que revela a enorme complexidade do procedimento, um número ilimitado de pedidos de morte pela mesma pessoa ou a obrigação de fundamentação concreta da objeção de consciência pelos profissionais de saúde. Mas não pode deixar de manifestar que a introdução de um processo de antecipação da morte em condições reguladas pelo Estado introduz um viés no edifício legislativo que é preocupante para a APCP, para outras ordens profissionais e outros setores da sociedade civil.

Esta alteração interferirá de forma indelével, tanto nas respostas que concede, como nos meios que recusa ou disponibiliza, na relação do Estado e do sistema de saúde com os seus cidadãos; na relação entre o médico e o doente; e na forma como todos e cada um de nós encara a morte e a vida que conduz a esse momento, esse sim vivido em solidão.

Na voz da APCP e do seu grupo de reflexão ética, considera-se que o desenvolvimento de CP, caminhe a par do desenvolvimento de outras opções.

Autor: 
Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
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