Bolachas anti-inflamatórias feitas a partir do tremoço podem chegar ao mercado português dentro de um ano

A Moléculas Soberbas, start-up criada com o objetivo de continuar a desenvolver a investigação sobre a deflamina, proteína extraída das sementes do tremoço, que poderá estar na base de vários produtos anti-inflamatórios e anticancerígenos, recebeu o sinal verde para avançar com uma pequena fábrica de bolachas na Ilha da Madeira. Por agora, o grupo de investigadores, em parceria com várias outras entidades de investigação e de saúde, desenvolve os testes pré-clínicos que poderão conduzir ao uso de um extrato em bruto de deflamina na prevenção e cura de doenças inflamatórias intestinais e do cancro colorretal. Os resultados são animadores e encontram-se em fase de preparação vários ensaios pré-clínicos conjuntamente com várias instituições de Lisboa.
O projeto deflamina, desenvolvido pelos investigadores do Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa (ISA-UL), Ana Lima, Joana Mota e Ricardo Boavida Ferreira, venceu a distinção Born from Knowledge (BfK) Awards, promovida pela Agência Nacional de Inovação (ANI) na última edição dos Food & Nutrition Awards (FNA), que, 10 anos após a sua criação, têm a sua conferência anual e entrega de prémios agendada para 18 de novembro, às 15h00, podendo ser acompanhadas online no website e redes sociais do Jornal Económico.
“A deflamina é uma molécula com potencial para causar uma disrupção na prevenção e no tratamento de doenças do aparelho digestivo, de alguns tipos de cancro e de efeitos colaterais indesejados dos tratamentos oncológicos”, aponta Ricardo Boavida Ferreira. O investigador aponta as razões: “A família das enzimas metaloproteinases da matriz (MMP) compreende proteases que participam intensivamente em inflamação e cancro, mas também estão envolvidas em muitos papéis fisiológicos saudáveis. Por esta razão, muitos inibidores de MMP, tanto naturais como sintéticos, falharam na fase dos ensaios clínicos, porque entram na corrente sanguínea e inibem as funções ‘boas’ que as MMPs desempenham no corpo humano”. Os investigadores admitem que a deflamina, atuando no aparelho digestivo, não deve apresentar os efeitos colaterais nefastos dos inibidores de MMP previamente testados.
Uma potencial cura para a COVID-19?
“Entretanto abriram-se novas perspetivas, uma vez que o mecanismo de ação da deflamina sobre as MMPs, que explica a sua potente ação anti-inflamatória e anticancerígena, é o mesmo que é necessário para travar, potencialmente, a COVID-19. Resumidamente, as células dos pulmões (e muitas outras do nosso corpo) respondem ao vírus produzindo moléculas inflamatórias, incluindo MMPs, sendo as moléculas inflamatórias que provocam a inflamação. Ou seja, são as nossas próprias células e proteínas que destroem o nosso tecido pulmonar. Estou convencido de que a inalação de deflamina pura trata a doença provocada pelo vírus SARS-CoV-2, mas teremos de averiguar muito bem o seu perfil de toxicidade”, defende Ricardo Boavida Ferreira, reconhecendo, contudo, que para comprovar esta teoria e produzir resultados ainda há um longo caminho a percorrer, começando pela necessidade de financiamento e de recrutamento de uma equipa de investigadores.
Num sentido lato, a deflamina é uma mistura de polipéptidos que exibe propriedades anti-inflamatórias e anticancerígenas, obtidos após aplicação de um procedimento específico de extração a um número de sementes comestíveis. A preparação bruta da deflamina é alcançada envolvendo exclusivamente extração com água e tratamentos com temperatura, visto que o oligómero puro é conseguido usando apenas água e etanol, assim como alterações de temperatura e de pH. A deflamina foi encontrada em sementes de algumas leguminosas (por exemplo, tremoço, grão-de-bico e soja, por ordem decrescente de atividade) e não-leguminosas. Estes procedimentos foram programados para serem facilmente adaptáveis a processos de scaling-up, quer para um nível de unidade-piloto, quer para uma escala industrial.
Primeiros estudos com resultados animadores
Atualmente, ao grupo de investigadores do ISA-UL juntaram-se Anabela Raymundo, da área de Engenharia Alimentar do ISA-UL, outros investigadores deste instituto e de várias outras instituições como o Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil (IPO), o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), o Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM), a Universidade da Madeira e a Universidade de Guadalajara, México. O projeto engloba ainda parcerias com outras entidades.
Até ao momento, foram desenvolvidos ensaios em ratos e peixes-zebra, com resultados excelentes. Os primeiros, realizados na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa e na Universidade Luterana do Brasil, em Porto Alegre, Brasil, consistiram na indução de colite em ratos que, previamente ou posteriormente (efeitos preventivo e curativo, respetivamente), ingeriram deflamina sob a forma de extrato bruto de tremoço como suplemento alimentar ou a quem foi administrada deflamina pura via injeção intraperitoneal. As experiências com peixes-zebra enxertados com células de cancro do cólon humano e expostos à deflamina, conduzidas no iMM, mostraram uma redução de cerca de 75% no tamanho dos tumores. Curiosamente, a deflamina, que não afeta a viabilidade celular nem o crescimento de células de cancro do cólon em cultura, mas apenas a sua capacidade invasiva, induz apoptose celular nos tumores que se formam nos peixes-zebra enxertados com células de cancro do cólon humano. Foram ainda realizados no INSA ensaios à mutagenicidade, genotoxicidade e citotoxicidade da proteína, que passou em todos os testes como sendo 100% segura para ingestão. Em breve, está previsto o arranque do ensaio de nutrição com leitões desmamados, com a colaboração do grupo de nutrição animal do ISA-UL, para averiguar como é que a deflamina se comporta num modelo animal de nutrição semelhante ao humano. Dentro de dois a três meses, será iniciada uma série de testes pré-clínicos com ratos no iMM. “Estamos também a avançar rápido com todos os inúmeros testes e experiências de preparação do nosso primeiro ensaio clínico”, revela Ricardo Boavida Ferreira.
Apesar de a deflamina pura poder vir a ser usada na prevenção e tratamento de doenças, a Moléculas Soberbas não pretende desenvolver um medicamento, um processo que poderia durar 10 a 12 anos e custar entre 300 e mais de 500 mil milhões de dólares. A estratégia passa por criar alimentos que incluam um extrato bruto de tremoço contendo deflamina. Nesta fase, a startup pretende financiar o subsequente desenvolvimento da deflamina, fazer o scaling-up do processo de produção para o nível de unidade-piloto e, logo que possível, iniciar as vendas. Atualmente, as bolachas já existem em várias versões (sem glúten, farinhas alternativas, etc.), podendo ser comercializadas dentro de um ano. No entanto, o objetivo de médio-prazo será o de criar um label que aponte as suas propriedades anti-inflamatórias e anticancerígenas, o que poderá ainda levar algum tempo e a realização de diversos ensaios.
A produção das bolachas arrancará assim que a unidade-piloto estiver em funcionamento, mas a start-up já estuda declinações para outros alimentos, como gelatina, que possam ser mais facilmente ingeridos por alguns doentes. A Moléculas Soberbas acaba de ver aprovado o primeiro projeto a que se tinha candidatado, no âmbito do Sistema de Incentivos à Inovação Empresarial da Região Autónoma da Madeira – Inovar 2020, para a construção das instalações da unidade-piloto na Ilha da Madeira, onde também já desenvolveu uma parceria com a Universidade local.
O projeto venceu a distinção Born from Knowledge Awards nos prémios FNA 2018 por incorporar uma forte componente de inovação com base científica e tecnológica. Depois do sucesso da sua 9ª edição, o FNA festeja 10 anos de existência com as seguintes categorias: sustentabilidade alimentar; investigação e desenvolvimento; produto inovação e educação alimentar. Organizados pelo Jornal Económico e pela Sustainable Society, os FNA afirmam-se como agente mobilizador para a inovação no setor agroalimentar, agregado às áreas da Educação e da Saúde, sendo um motor para o empreendedorismo, valorização da produção nacional e promoção de estilos de vida e hábitos alimentares saudáveis.
A distinção BfK Awards será atribuída pela terceira vez no âmbito da parceria da ANI com os FNA. A distinção foi anteriormente atribuída aos projetos River Rice Sugar®, um adoçante natural obtido através do arroz e com produção 100% nacional, e Deflamina. De referir que a iniciativa Awards reconhece projetos e empresas “nascidas do conhecimento” e que mais se destaquem em atividades de Investigação & Desenvolvimento, nomeadamente colaborativa. É um prémio especial atribuído pela ANI em alguns dos mais prestigiados concursos e/ou prémios de inovação em Portugal e realiza-se no âmbito do projeto SIAC – Iniciativa de Transferência de Conhecimento, cofinanciada pelo COMPETE 2020, através do Portugal 2020 e do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional.