Impacto da pandemia na saúde digestiva dos portugueses

“O que mais nos preocupa é o atraso no diagnóstico e tratamento das doenças oncológicas”

Atualizado: 
29/05/2020 - 15:47
Antes da pandemia, em Portugal, realizavam-se, em média, cerca de 1000 colonoscopias por dia. Em entrevista ao Atlas da Saúde, Rui Tato Marinho, presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, revela que agora, "não há tempo a perder". "Ficaram de certo alguns cancros por diagnosticar". "O principal desafio será retomar a nossa atividade de forma plena", afirma.

Ainda antes do mundo conhecer esta pandemia, como estava a saúde digestiva dos portugueses?

A maior riqueza que um povo pode ter termos de Saúde é sem sombra de dúvida profissionais de saúde. Portugal tem excelentes profissionais de saúde, médicos, equipas de enfermagem, técnicos, gestores, na área da Saúde Digestiva. Os aparelhos são na grande maioria do melhor que poderemos ter, muitas vezes comparáveis ao que de melhor existe no Mundo. Chamo a atenção para a qualidade dos nossos médicos gastrenterologistas (o especialista do Aparelho Digestivo, não cirurgião), cuja formação incluindo o curso de Medicina são 11 anos de intensa atividade (urgências, exames endoscópicos, consultas, etc.).

Temos cerca de 500 gastrenterologistas para servir o povo português. Fazemos por exemplo cerca de 1000 colonoscopias por dia, para evitar a morte pelo principal cancro dos portugueses, o do intestino grosso. Existem aproximadamente 50 Serviços/Unidades que oferecem os cuidados para as doenças do Aparelho Digestivo. Pra prevenir, diagnosticar e tratar, (curar mesmo, em muitas situações.

Ou seja, os portugueses têm acesso ao que de melhor pode existir na oferta em termos de cuidados de saúde do Aparelho Digestivo.

Agora, poderemos sempre melhorar a Saúde Digestiva dos portugueses: por exemplo, considerar três pontos de ação: estilos de vida saudável (alimentação equilibrada, exercício físico, manter o peso), consultar um especialista antes e após ter sintomas (diarreia, obstipação, refluxo, perda de sangue, dor abdominal, olhos amarelos, análises do fígado alteradas, etc.) e fazer alguma investigação de rotina (análises ao fígado – ALT, rastreio do cancro do cólon aos 45-50 anos, sempre que puder, através de colonoscopia).

Quais as principais doenças digestivas em Portugal?

As graves: 10.000 mortos por ano por cancro digestivo (esófago, estômago, fígado, pâncreas, intestino grosso ou cólon e reto), 10.000 novos casos de cancro do cólon por ano, 2 milhões de obstipados, 1 milhão com síndroma do intestino irritável (dor abdominal, diarreia, obstipação de forma crónica associada a stress), 3 milhões com doença de refluxo (ácido do estômago que vai para o esófago provocando intensa azia e ardor atrás do peito), 7 milhões com a bactéria do estômago (helicobacter pylori), 1,5 milhão com pedras na vesícula, 1 milhão com análises do fígado alteradas, 5 milhões que têm ou tiveram problemas no ânus, 15-20.000 com doença inflamatória do intestino (Doença de Crohn, Colite Ulcerosa), entre muitas outras.

Relembro que o aparelho digestivo tem cerca de 10 metros da boca ao ânus. São seis órgãos principais: esófago, estômago, intestino delgado (o órgão mais comprido do organismo – 7 metros), intestino grosso (inclui o cólon e o reto), fígado (o mais pesado com cerca de 1,5kg) e vesícula biliar, pâncreas. É responsável pela ingestão, secreção de substâncias para a digestão, absorção, propulsão e eliminação dos restos dos alimentos nas fezes, depois de absorvidos. Não há vida sem fígado, pâncreas ou pelo menos parte do intestino delgado.

Quais os principais desafios associados não só ao seu diagnóstico, mas também no que diz respeito ao seu tratamento?

Os principais desafios são informar a população portuguesa do que têm de fazer para manterem um boa Saúde Digestiva e assim continuarem a viver muitos e bons anos. Os portugueses são dos povos que mais anos vivem, em todo o Mundo. Informar sobre o modo de prevenir, diagnosticar, tratar e curar as doenças que referi: manter estilos de vida saudáveis, incluir as análises ao fígado nas ditas de rotina (a ALT) rastreio para o cancro do cólon e reto aos 45-50 anos, sendo o melhor método a colonoscopia. E sempre que surgirem os sinais de alarme ou falta de apetite, cansaço intenso e perda de peso significativa.

Considera que a população portuguesa está devidamente sensibilizada ou desperta para a sua saúde digestiva?

De um certo modo sim. Fizemos um inquérito recentemente, para ser dado a conhecer no Dia Mundial da Saúde Digestiva (29 de maio) que demonstrou que a população está alertada para os principais problemas, cancros, problemas de digestão, necessidade de realizar exames, estilos de vida saudáveis, etc.

Mas ainda há muito a fazer nos três pilares da nossa atividade de gastrenterologistas: prevenção, diagnóstico, tratamento e cura. Eu acrescentaria um quarto, a informação correta e credível. Devido á quantidade de informação estamos preocupados em combater as fakes news, a desinformação que possa existir acerca de todos os problemas da Saúde Digestiva. Mais e melhor informação corresponde a mais e melhor Saúde Digestiva. Há muitos mitos sem fundamentos de verdade científica.

Na sua opinião, o que falha ou o que falta fazer em matéria de prevenção?

Volto a insistir nos estilos de vida saudável: não fumar, não beber álcool em excesso, evitar excesso de peso, alimentação equilibrada (hidratar com água, evitar gorduras, fritos, açúcar nas bebidas e alimentos, ingerir fruta e vegetais, etc.), fazer exercício físico. O não cumprimento destas medidas e atitudes contribui de forma marcada para ter doenças do Aparelho Digestivo. Aliado a tudo isto, fazer análises de rotina incluindo as do fígado, rastreio do cancro do cólon aos 45-50 anos e consultar um especialista do aparelho digestivo, eventualmente pelos 50 anos para planear a manutenção da Saúde Digestiva. O tal gastrenterologista…!

Quais os principais desafios que vamos encontrar, nesta área, após a pandemia? De que forma a Covid-19 marcou a saúde digestiva dos portugueses?

O principal desafio será retomar a nossa atividade de forma plena, o que não vai ser fácil. Quanto às consultas têm sido não presenciais, a grande maioria. O que não é o mesmo de que consultar e ser observado pelo médico. Algumas poderão manter-se de forma não presencial, mas… O assunto principal diz respeito aos exames que deixámos de fazer, designadamente as colonoscopias e as endoscopias altas. Os gastrenterologistas fazem cerca de 1000 colonoscopias por dia e se calhar um valor superior em endoscopias altas. Ficaram de certo alguns cancros por diagnosticar. Estimamos que todos os meses surjam quase 1500 portugueses com cancro digestivo daqueles cinco órgãos, a que chamamos os Big Five. Não há tempo a perder. O facto de termos que usar os fatos de proteção vem dificultar sobremaneira a nossa atividade. Mas temos que ser positivos e planear “task-forces” para aumentar a produtividade.

De um modo geral, acha que a população descurou alguns cuidados?

Penso que possa ter existido aumento de peso, devido à falta de exercício físico, dificuldade nas compras e consequentemente nem cumprir alimentação saudável. Poderá ter surgido também aumento da obstipação e claro dificuldade no acesso aos cuidados de saúde, incluindo análises, exames de imagiologia e ausência das consultas, exames endoscópicos e serviço de urgência. Não podemos viver saudáveis sem atividade médica.

E no que diz respeito aos doentes, nomeadamente quanto ao acesso a exames de diagnóstico e tratamentos, quais as consequências que esta pandemia lhes trouxe?

Dificuldade no acesso aos cuidados de saúde com problemas no rastreio, diagnóstico e tratamento das doenças. O que mais nos preocupa são o atraso no diagnóstico e tratamento das doenças oncológicas. O que também nos preocupa muito é o medo que se instalou com receio das pessoas se deslocarem aos serviços de saúde.

No âmbito deste tema, que mensagem gostaria de deixar. Quais as principais recomendações?

Atitudes muito simples, mas ao mesmo tempo muito complexas, como mudar no sentido de ter um estilo de vida saudável, consultar um médico, se necessário um gastrenterologista, quando se esta saudável. Por fim ser muito criterioso na quantidade e qualidade da informação sobre saúde. Pode confiar nas Sociedades Científicas e nos seus sites.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia