Entrevista

"Todo o doente com diabetes tem alto risco para doença cardiovascular"

Atualizado: 
25/05/2020 - 12:38
Apesar de as complicações cardiovasculares serem uma das principais causas de morte entre os doentes diabéticos, ainda há quem não esteja desperto para este problema. Em entrevista ao Atlas da Saúde, Eurico Silva, médico de medicina geral e familiar, mostra como a atuação a nível dos cuidados de saúde primários é essencial para prevenir a doença cardiovascular e o seu desfecho fatal.

A doença cardiovascular é a principal causa e morbilidade e mortalidade na diabetes, nomeadamente na diabetes tipo 2. É, contudo, uma doença subavaliada e subdiagnosticada, logo subtratada. O que pode explicar a falta de diagnósticos ou o diagnóstico tardio?

Adianto dois motivos. O primeiro. O foco glucocêntrico. Estamos muito focados no controlo da glicemia, quer médicos quer as pessoas com diabetes. O médico com a HbA1c e o doente com os valores das “picadas”. Sendo a prioridade “glucocêntrica” é mais difícil a orientação de esforços para as outras faces da diabetes como a doença cardiovascular. O segundo. A dificuldade diagnóstica da DCV. Os meios mais acessíveis detetam já em estádios mais avançados, logo, para a maioria da pessoa com diabetes, a DCV está distante, apesar de provavelmente já estar a viver com ela.

Como é a doença cardiovascular nos diabéticos? Quais a principais complicações?

Numa palavra, Insidiosa. A principal complicação é como todos sabemos a morte. Lentamente a aterosclerose vai entupindo os leitos vasculares até que algum órgão nobre sofra e sucumba, e aí temos o enfarte do miocárdio, o acidente vascular cerebral, a falência renal…

Quais os fatores de risco para o desenvolvimento de doença cardiovascular em pessoas com diabetes?

A aterosclerose na diabetes é mais acelerada pois as “gorduras do sangue” de uma pessoa com diabetes acumulam-se com maior facilidade. Mas temos de nos lembrar que uma pessoa com diabetes pode ter também outros problemas, genéticos, comportamentais que aceleram o processo, tais como hipertensão, tabaco, sedentarismo… e a idade, pois quanto maior a idade, mais tempo as “gorduras” tiveram para se depositarem

Quais os sintomas associados às doenças cardiovasculares a que as pessoas com diabetes devem estar atentas?

Lembro duas que sendo frequentes são muitas vezes negligenciadas. A impotência sexual que pode significar o entupimento dos pequenos vasos sanguíneos do pénis. Há que estar atento pois pouco tempo após ocorrer impotência poderão vir entupimentos de vasos maiores como os cardíacos e ocorrer um enfarte. A “doença das montras” também é um caso interessante. Falo da doença arterial periférica em que a pessoa ao caminhar seguidamente tem dor intensa na “barriga das pernas”, mas se andar pouco de cada vez, como “quem vai ver as montras” a doença pode não se mostrar. O sedentarismo esconde esta doença! Atenção, se ocorrer dor na região dos gêmeos enquanto se caminha há que descartar a doença arterial periférica.

Estudos randomizados e observacionais mostram que a prevalência da doença coronária nos diabéticos é, no sexo masculino, cerca do dobro em relação aos não diabéticos. No sexo feminino, sobre para 4 a 5 vezes. O que explica que as mulheres diabéticas tenham maior probabilidade de desenvolver esta doença?

Estes dados fazem-nos estar alerta para o risco de doença coronária, ou seja, enfarte e doença anginosa, nas pessoas com diabetes. E pensar que as mulheres após a menopausa passam a ter risco aumentado pois perdem algum efeito protetor das hormonas.

Na mulher as manifestações são mais graves e a mortalidade maior. As causas são:

  • As queixas da mulher são menos típicas, por isso a mulher é menos estudada e a doença é identificada tardiamente.
  • Os fatores de risco cardiovascular são menos valorizados na mulher, o que leva a que não sejam devidamente tratados e corrigidos;
  • As artérias mais finas e a maior tendência para as hemorragias na mulher aumentam as complicações dos tratamentos.

Que doentes devem ser investigados e como se identificam os doentes assintomáticos?

A resposta é fácil, todos, pois todo o doente com diabetes tem alto risco para doença cardiovascular. A dificuldade é como e quando. Sem sintomas é difícil, mas quem tem diabetes há mais anos, colesterol elevado, história de tabaco, hipertensão arterial… tem mais risco e tem de estar atento a sintomas e disposto a tratar de si, cumprindo as orientações dos profissionais de saúde e fazendo as vigilâncias regulares.

Quais os principais cuidados, ou alterações ao estilo de vida, que estes doentes devem ter para prevenir o desenvolvimento da doença cardiovascular?  

Diria “Corpo são, mente sã”. Na USF João Semana temos um programa em conjunto com a Câmara Municipal de Ovar de “caminhadas orientadas” por professores de educação física, 2 vezes por semana, em que de forma descontraída, as pessoas com e sem doenças, se juntavam (até à era da COVID) para dar saúde ao corpo e à mente. Exercício na diabetes reduz a resistência à insulina, reduz a inflamação vascular e tem efeito benéfico na aterosclerose. O Homem é um “animal social” e deve socializar com atividades físicas, pois socializar à mesa é agradável, mas potencialmente fatal!

Qual o papel do médico de família nesta relação tão perigosa associada à diabetes?

A equipa de saúde dos CSP (médico e enfermeiro) são os treinadores da maratona da vida. Não vão correr com a pessoa, mas estão lá para dar as orientações, a motivação e o abraço, a repreensão e o ombro amigo, mas quem corre e correrá será sempre a pessoa com diabetes.

Quais as principais dificuldades no controlo da diabetes e prevenção de comorbilidades, no âmbito dos cuidados de saúde primários?

A diabetes trata-se com 4 coisas, alimentação, exercício, medicação e o QUERER. A doença é “chata” pois interfere com hábitos e gostos, e ainda por cima, é crónica. O “QUERER mudar” e o “QUERER manter a mudança” são os principiais problemas pois a medicina que temos hoje em Portugal: acesso, profissionais e terapêutica inovadora, conseguem fazer qualquer pessoa com diabetes correr a maratona da vida sem cair.

Que mensagem gostaria de deixar no âmbito desta temática?

Nos cuidados de saúde primários temos uma ferramenta de monitorização, BICSP, que mostra que, a nível nacional só cerca de 35% das pessoas com diabetes têm o colesterol mau (LDL) abaixo de 100mg/dL (atenção que a maioria das pessoas com diabetes deverão ter abaixo de 70). Temos de ser mais exigentes! O valor de referência nos boletins de análises não se deve aplicar neste assunto do colesterol e diabetes!!! Para reduzir a doença cardiovascular na pessoa com diabetes é obrigatório que médicos e doentes tratem as “gorduras” como tratam o “açucar”. Devem QUERER baixar o colesterol até ao alvo ideal. O primeiro passo é saber qual o alvo ideal para cada pessoa. QUEIRA saber o seu e atinga-o com precisão.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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