Entender a Dor Crónica

Três em cada dez portugueses sofrem de dor crónica

Atualizado: 
20/02/2019 - 15:29
De acordo com a Associação Portuguesa para o Estudo da Dor (APED), três em cada dez portugueses sofrem de dor crónica. Um problema que atinge sobretudo a população mais idosa e vulnerável. Com a ajuda do especialista em Medicina Geral e Familiar da USF Garcia de Orta, Manuel Amaral Henriques, explicamos-lhe em que consiste e em que casos pode ser prevenida.

O que é a Dor Crónica e qual a sua incidência na população portuguesa?

De acordo com a International Association for the Study of Pain, a dor é uma experiência multidimensional desagradável, envolvendo não só um componente sensorial mas também um componente emocional, e que se associa a uma lesão tecidular concreta ou potencial, ou é descrita em função dessa lesão. É comummente aceite que a dor é crónica quando dura há mais de três meses, podendo esta definição variar de acordo com a patologia.

Ou seja, a dor é um fenómeno complexo, pessoal e subjetivo, envolvendo sensações, emoções e outros componentes que lhe estão associados, devendo por isso ser abordada na base de um modelo que tenha em conta a sua vertente biológica, psiciológica e social, considerando que a mesma lesão pode causar dores diferentes em indivíduos diferentes ou no mesmo indivíduo em momentos diferentes, dependendo do contexto em que o indivíduo está inserido na altura e que, por vezes, pode existir dor sem que seja possível, naquele momento, identificar uma lesão que lhe dê origem.

Os estudos epidemiológicos internacionais das últimas décadas permitiram-nos um conhecimento mais aprofundado acerca do peso da dor crónica e da sua origem. Na população adulta os síndromes são síndromes da região lombar, anca e ombro (entre 25 a 35% da população), enquanto os síndromes de dor generalizada estão presentes em 10-15% da população.

Em Portugal, de acordo com os mais recentes estudos, a prevalência da dor crónica de qualquer intensidade ultrapassa os 40%, mas a intensidade da dor é moderada ou forte em cerca de 16% dos entrevistados, estando dentro da média europeia.

Quais as suas causas e principais fatores de risco?

De uma forma geral, a dor pode ser uma consequência inevitável da vida, sendo até um mecanismo de defesa e de fuga ao perigo. De facto, em alguns estudos, menos de 1 em 5 pessoas afirmam não ter tido algum tipo de dor no último mês.

No entanto, para considerar dor como doença, esta terá que estar presente por tempo prolongado e sem o seu efeito protetor e de defesa.

Há vários fatores que podem levar a uma “patologização” da dor. Os fatores psicológicos e psicossociais, como o stress, a depressão, a ansiedade e eventos de vida adversos foram identificados como importantes despoletantes de síndromes regionais e generalizados de dor crónica.

A desvantagem social, quer seja medida através de classe social ou de literacia, aparente também ser um fator de risco importante para a dor em geral.

Também importantes são os fatores mecânicos (traumatismos, repetições de movimentos, postura,...) que aparentam ser específicos de síndromes musculoesqueléticos (lombar, ombro, anca, joelho,...). Há ainda a considerar alguns fatores genéticos e hormonais em alguns síndromes específicos, mas não como fator de risco para a dor crónica em geral.

A Dor Crónica também pode atingir as crianças? Quais as causas que lhe estão associadas?

A dor crónica na infância e na adolescência não é apenas uma questão importante para o doente, mas também é uma condição que exerce considerável influência sobre os setores médico, social e económico. É um problema significativo com estimativas que postulam 20 a 35% das crianças e adoelescentes afetados por ela em todo o mundo, embora a maioria das crianças que relatam a dor crónica não estejam muito queixosas, cerca de 3% destes necessitam de intervenção intensiva.

A dor crónica em crianças é o resultado de um integração dinâmica de processos biológicos, fatore psicológicos e variáveis socioculturais, consideradas dentro de uma trajetória desenvolvimental.

A dor cónica inclui dor persistente (em curso) e recorrente (episódica) em crianças com condições de saúde subjacentes (por exemplo, doença inflamatória intestinal, anemia falciforme, artrite reumatóide) e dor que é o primeiro distúrbio (por exemplo, cefaleias primárias, síndrome dolorosa, dor musculoesquelética, síndrome doloroso regional complexo).


A dor está muitas vezes associada a fadiga, anorexia, alterações do sono, obstipação, náuseas ou dificuldade de concentração

Como é feito o seu diagnóstico?

A dor é uma experiência pessoal e subjetiva que contémdimensões discriminativas-sensoriais, afetivas-motivacionais e cognitivas-avaliativas. Tendo em conta o descrito, torna-se importante definir que uma medição precisa da dor é um processo díficil mas essencial para perceber os fatores que determinam a intensidade, qualidade e duração da dor, melhorar o diagnóstico e o tratamento, e avaliar a eficácia dos tratamentos.
Métodos para avaliação da dor incluem escalas verbais e numéricas (auto-diagnósticas), escalas comportamentais e de resposta fisiológica. A natureza complexa da experiência da dor leva muitas vezes a uma discordância nos resultados destas escalas.

Como a dor é mais uma experiência subjetiva, as escalas de auto-avaliação são  o método mais válido para a sua avaliação. Existem várias escalas validadas, incluindo escalas mais extensas e que contemplam a natureza multidimensional da dor, permitindo uma definição de local, características e intensidade da dor (como por exemplo, o Questionário da Dor de McGill).

Qual o tratamento indicado para a dor crónica?

A dor crónica reduz consideravelmente a qualidade de vida dos doentes. Assim, o objetivo da terapêutica da dor crónica tem de ser a supressão da dor ou, se tal for impossível, levar a uma redução de pelo menos 50% da intensidade de forma a dar mais qualidade de vida.

Devido à sua complexidade, a dor crónica requer abordagens diferenciadas e complementares, como tratamento físico e psicológico e terapêutica farmacológica. Uma boa relação entre o médico e o doente deve ser estabelecida, pois facilitará a orientação do tratamento.

Esta orientação deve ser adaptada para cada doente individualmente, sendo que os objetivos do tratamento devem ser realistas e devem ser focados na restauração da função normal (incapacidade mínima), melhor qualidade de vida, redução do uso de medicamentos e prevenção de recaída de sintomas crónicos.

Dentro da terapêutica farmacológica temos uma gama alargada de medicamentos para alívio da dor (analgésicos). Dependendo da gravidade da dor, estão disponíveis tipo de diferentes de analgésicos. São utilizados medicamentos não-opióides para o tratamento da dor ligeira. Para dor mais grave, podem ser utilizados medicamentos opióides, que são mais fortes como analgésicos e apresentam principalmente efeito central (no cérebro ou medula espinal).

Além disso, são utilizados analgésicos adjuvantes quando tal for adequado. Os analgésicos adjuvanes são medicamentos cuja indicação principal não é o alívio da dor, contudo demonstram alguns efeitos analgésicos, como é o caso de antidepressivos.

Adicionalmente, o controlo da dor pode ser apoiado por abordagens não farmacológicas como estimulação nervosa elétrica transcutânea (TENS), acupunctura ou hipnose.

A dor pode ser prevenida? Quais os principais cuidados a ter?

A dor crónica nem sempre pode ser prevenida, mas manter uma boa forma física e mental pode ser a melhor maneira de prevenir ou ajudar a conviver com ela.

A maioria das causas de dor crónica podem ser prevenidas. Algumas das coisas que podem ser feitas para ajudar a prevenir esta patologia são:

1. não ignorar a dor aguda (o tratamento atempado de patologia aguda pode prevenir a cronificação da dor);

2. adquirir um estilo de vida saudável, com exercício físico regular, boa nutrição e controlo de peso de uma forma regular, assim como deixar de fumar e limitar o consumo de álcool;

3. manter uma rede de apoio social forte, mantendo contactos regulares com família, amigos e colegas de trabalho;

4. dormir o suficiente (6-8 horas por dia, para restaurar energia e vitalidade);

5. reduzir níveis de stress. Manter-se organizado, planear antecipadamente e aprender técnicas de relaxamento;

6. ter cuidados ergonómicos em casa e no trabalho;

7. evitar desportos de alto risco e outras atividades perigosas;

8. manter e cumprir as regras de segurança rodoviária.

De que modo a dor crónica condiciona o dia-a-dia de quem dela padece?

A dor crónica pode afetar as pessoas de uma forma diferente de acordo com as suas circunstâncias individuais, afetando a vertente física, emocional, psicológica e social.

A dor crónica está ligada a um maior risco de alterações psiquiátricas, incluíndo depressão e ansiedade. A presença de sinais de stress enviados da periferia para o cérebro de uma forma constante leva a uma percepção aumentada da dor, mas também do nível percebido de ameaça.

Doentes com dor crónica são mais propensos a sofrer de depressão porque a dor atua nas áreas do cérebro que regulam não apenas a emoção, mas também o sono. Quando o sono se torna insatisfatório (muito longo, muito curto, de má qualidade, etc), os sentimentos de depressão, ansiedade e dor tornam-se mais intensos. O cérebro tamvém começa a antecipar a dor, levando á nasiedade e a uma hipervigilância normalmente associada ao transtorno de stress pós-traumático.

Assim como a dor crónica pode levar à depressão, a própria depressão pode levar à dor crónica.  Este é um ciclo vicioso que pode ser muito difícil de quebra.

Com este estado de vigília constante, o tempo, a energia e a atenção são percepcionados de uma forma diferente. Há uma diminuição da capacidade para tomar decisões, havendo até uma tendência para tomar decisões diferentes do que se não tivesse dor.

Com isto vem também que, tanto a família como os amigos podem ser muito afetados pela dor crónica, podendo levar a conflitos e afastamentos que só levam a um agravamento da depressão e da dor.

A dor crónica pode ainda ser uma causa de frustração com tarefas familiares e conjugais, como cuidar dos filhos diariamente e tarefas domésticas, assim como com dificuldade na atividade sexual.

No trabalho podem haver problemas que agravam esta ansiedade e depressão de base, com um ambiente prejudicado por ausências frequentes ou o que é percebido como tratamento especial para uma doença invisível.

E quais as suas repercussões socioeconómicas?

A dor crónica tem um impacto social e individual relevante e, devido à sua elevada frequência, também se tem mostrado um dos principais contribuintes para o aumento da utilização de serviços de saúde, redução da produtividade e, consequentemente, grandes custos diretos e indiretos.

Um estudo recente, realizado em Portugal pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, tentou responder a esta pergunta. A conclusão foi que se gastam cerca de 4.611 milhões de euros a nível nacional no tratamento da dor crónica, com 42.7% de custos diretos e 57.3% indiretos, correspondendo a 2.71% do PIB anual português em 2010. Os custos diretos e indiretos estão relacionados com medicação e consultas e com ausências laborais e outros dia perdidos, respetivamente.

Como se pode ver, esta é uma patologia que leva a um grande impacto no sistema de saúde e económico.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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