Estudo

Descoberto o interstício, um novo órgão do corpo humano

Já tinha sido definido como o “terceiro espaço”, mas nunca o tinham considerado um órgão. Cientistas dos EUA propõem agora que o interstício, formado por um espaço com fluido em circulação, se torne um órgão do corpo humano.

O corpo humano continua a surpreender-nos. Em pleno século XXI, uma equipa de cientistas dos Estados Unidos revela-nos que temos um órgão que nunca tinha sido considerado como tal. Chama-se interstício, é formado por um espaço com fluido e está nos tecidos conjuntivos por baixo da superfície da pele, reveste o tubo digestivo, os pulmões e o sistema urinário e rodeia as artérias, as veias ou a membrana entre os músculos – tudo numa única estrutura. Num artigo científico publicado esta terça-feira na revista Scientific Reports, pela primeira vez, os cientistas descrevem este órgão e consideram-no um dos maiores do corpo humano.

A “descoberta” aconteceu graças a um novo endoscópio. Em 2015, os médicos e autores do trabalho Petros Benias e David Carr-Locke mostraram ao patologista e coordenador do trabalho Neil Theise fotografias das paredes dos canais biliares (que existem normalmente no fígado e por onde são excretados os produtos segregados pelas células) que tinham sido obtidas através do tal endoscópio. Estes instrumentos são usados para examinar órgãos internos, tirar amostras dos tecidos e fazer diagnósticos.

“Este endoscópio tem uma nova função: depois de injetar um pouco de corante fluorescente na veia da pessoa durante a endoscopia, pode-se examinar o tecido vivo a um nível microscópico semelhante ao que se tem nas biopsias”, conta ao jornal Público Neil Theise, da Escola de Medicina Icahn do Hospital do Monte Sinai (em Nova Iorque), tal como Petros Benias e David Carr-Locke. “Em muitos casos, usou-se o endoscópio para examinar o esófago, o estômago, o intestino delgado ou o intestino grosso, mas nada de extraordinário se revelou.” O cenário mudou quando se observaram “espaços” nos canais biliares que não correspondiam ao que se conhecia até então.

Neil Theise confessa que tentou saber o que seriam esses “espaços” só através da análise dessas fotografias, mas não conseguiu. Por isso, a equipa analisou canais biliares (ainda saudáveis) retirados de doentes com cancro durante as operações. “Então, vimos algo inesperado. Uma camada intermédia do canal biliar, que se pensava que fosse um tecido conjuntivo densamente compactado e com uma parede de colagénio densa, era na verdade um espaço aberto, preenchido por fluido e sustentado por uma rede de fibras de colagénio.”

A pouco e pouco, os cientistas analisaram outras camadas de tecidos conjuntivos, como as dos revestimentos dos órgãos viscerais, da derme (uma camada da pele), a fáscia ou o tecido conjuntivo à volta dos vasos sanguíneos. Em todos encontraram o interstício.

Nesse espaço, está o fluido extracelular, aquele que não está dentro das células. “Alguns espaços como estes são óbvios: o sistema cardiovascular tem o fluido do sangue, os próprios vasos linfáticos, e o espaço dentro do cérebro e da medula contém fluido cérebroespinal”, descreve Neil Theise, dizendo que se estima que todos esses espaços só tenham um quarto de fluido extracelular. “Aproximadamente 20% do volume do fluido do corpo, que inclui cerca de dez litros, está dentro do interstício.”

Novo tipo de células
Para que serve? “O fluido intersticial foi criado para ser a ‘pré-linfa’, que chega ao fluido no sistema linfático. Por isso, este espaço é a continuação direta do sistema linfático e dos gânglios linfáticos”, explica o patologista. E frisa-se no artigo: “O espaço intersticial é a fonte primária da linfa e é o maior compartimento de fluido no corpo.” Contudo, Neil Theise destaca que ainda se sabe muito pouco sobre este órgão.

No passado, o interstício era definido como o “terceiro espaço” – depois do sistema cardiovascular e do linfático. “Era geralmente descrito como um mero ‘espaço entre as células’, embora ocasionalmente o conceito de que havia um grande espaço intersticial já tenha sido referido. Mas as suas características anatómicas e histológicas nunca tinham sido descritas”, conta Neil Theise.

Sobre os “indícios” da existência do interstício, o patologista brinca: “Agora podemos olhar para trás e dizer: ‘Ah, era o interstício que se estava a observar!’ Mas até publicarmos estes resultados, esta estrutura comum no corpo tinha de facto sido esquecida.”

Definir agora o interstício como um órgão ainda é algo “impreciso”, pois deve ser estudado ainda por outros cientistas para que exista um consenso sobre ele, disse o patologista ao site de notícias Live Science. Mas ao jornal Público salientou: “Normalmente, [considerar um órgão] implica que haja uma unidade e unicidade de uma estrutura e/ou de uma função. Este espaço tem ambas: propriedades únicas, assim como estruturas e funções que não são observadas noutro sítio.”

Além disso, esta descoberta pode levar a avanços na medicina, como diz o patologista: “Tem potencial para impulsionar grandes progressos na medicina, incluindo a possibilidade de uma amostra direta de fluido intersticial se tornar uma poderosa ferramenta de diagnóstico.” No artigo, os cientistas destacam que esta descoberta pode ser importante para o estudo das metástases de cancro, bem como do edema, da fibrose e dos mecanismos de funcionamento de tecidos e órgãos.

Vejamos alguns exemplos do que já se sabe. Como o interstício é uma “estrada” com fluido em circulação, isso poderá explicar por que é que as células cancerosas, quando a invadem, se tornam tão propensas a espalharem-se. “Sabemos há décadas que a invasão do cancro nessas camadas é o momento em que há mais risco de ele se espalhar para fora do órgão, particularmente para os gânglios linfáticos”, diz Neil Theise, realçando que antes se pensava que este espaço tivesse uma parede densa de colagénio. “O espaço é preenchido por uma ‘estrada’ de fluido, muitas vezes sob pressão, que circula diretamente no sistema linfático e, desta forma, para os gânglios linfáticos. As metástases tumorais estão dependentes deste espaço e das suas características.”

Nesse espaço, também há uma circulação de macrófagos, um tipo de células do sistema imunitário. “Quando fazemos uma tatuagem, esta é a camada em que o pigmento é depositado e é absorvido por essas células. Quando algumas células imunitárias se movem para aqui, elas chegam sempre aos gânglios linfáticos, como as células tumorais.” Mas, ao contrário das células cancerosas, aquelas desempenham uma função imunitária normal. “Provavelmente, células imunitárias de todos os tipos viajam através deste espaço durante uma lesão ou doença. Como estão em ligação direta com o sistema linfático, podem desempenhar um papel importante na inflamação.”

Neil Theise acrescenta também que há um novo tipo de células neste órgão: células que juntam características dos fibroblastos (células do tecido conjuntivo), que fabricam colagénio, e das células endoteliais, que revestem o interior dos vasos sanguíneos.

O interstício junta-se assim a outros órgãos recentemente “descobertos”, como o mesentério, uma dupla prega da membrana que cobre a parede abdominal, que foi reconhecido pelos cientistas como órgão no final de 2016. No ano passado, também ficámos a saber mais sobre as funções imunitárias do omento, uma cobertura adiposa que está na zona do abdómen, mesmo à frente dos órgãos viscerais, e que se assemelha a um avental. Ficamos agora à espera da próxima “descoberta”.

 

Fonte: 
Público Online
Nota: 
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Foto: 
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