O que os Enfermeiros também fazem…
Já foi treinador de Futsal, e hoje serve a modalidade através da Enfermagem. Fale-nos um pouco dessa sua vivência?
Enfº Hélder Lourenço (HL): Fui treinador de Futsal entre a época de 2009/10 e 2013/14, sempre na ASCRD da Casa do Benfica em Viseu, escalões de formação e competição (Iniciados, Juvenis e Juniores). Foi em 2008 que aceitei um convite desta associação com o intuito de ser o Enfermeiro do clube. Rapidamente, e talvez devido à falta de recursos humanos existentes e após um ano de experiência como adjunto, não sendo esse o meu objetivo inicial, fui novamente convidado a ser o treinador principal do escalão recém-formado de Iniciados, que acabei por assumir concomitantemente com o de enfermeiro do clube.
Sem dúvida foram excelentes anos de aprendizagem mútua entre um inexperiente técnico, com imenso gosto pela modalidade, e os seus jovens jogadores que estavam a iniciar a sua conturbada adolescência, com todas as dúvidas, dificuldades, princípios e personalidades que fazem parte integrante da mesma. Aí submergiu uma qualidade até então pouco visível, mas que veio a ser reveladora e muito importante nos dias de hoje, uma liderança forte, personalizada, assertiva e muito empática que, conjuntamente com o respeito que sempre nutri pelos vários intérpretes do jogo, permitiu granjear amizades que perduram. Aprendi a controlar as principais emoções, por forma a não extravasar as mesmas no momento errado, que sem dúvida seria prejudicial para aqueles que formalmente representava. Posso dizer, com algum laivo de vaidade, que nunca fui expulso ou mesmo adoestado por comportamento ou comunicação incorreta, o que nos dias de hoje, e para quem conhece o mundo do desporto distrital, não é muito fácil!
Acabei por pedir à direção do clube para me dispensar de qualquer cargo mais exigente relativamente ao tempo necessário para o desenvolver, em virtude de as funções que exerço na Secção Regional do Centro da Ordem dos Enfermeiros me ocuparem e me merecerem toda a disponibilidade possível por forma a melhor conseguir atingir os objetivos que tinha abraçado com o atual mandato social dos órgãos. Sempre perfilhei o desidrato de que para se realizar bom e profícuo trabalho temos de ter a disponibilidade, também mental, para o conseguir. No último ano em que treinei já não o conseguia fazer de forma adequada e merecedora para com os desportistas que ensinei, pelo método desportivo, a serem melhores e homens mais capazes num futuro próximo. Isso, meu caro, eu não podia permitir…
Como consegue conciliar a Enfermagem com o desporto? Foi a paixão pelo Benfica que também o levou ao futebol?
HL: Como não podia deixar de ser, o meu pai, fervoroso amante do futebol e ainda mais do glorioso S.L. Benfica, sempre me incentivou desde pequeno a ouvir os relatos, a ver os jogos, alegrando-me com as vitórias, entristecendo-me com as derrotas e compreendendo o que era a tal “mística”. Daí a eu próprio assumir esse papel de forma verdadeira e sincera foi um ápice. Como todos os jovens, adorava jogar futebol, mas apenas o conseguia fazer nos poucos intervalos escolares ou nas ruas da aldeia de onde sou natural (S. Salvador – Viseu). Inventava grandes fintas e marcava golos que sonhava serem memoráveis, mas que não passaram disso, pois nunca os meus pais tiveram a possibilidade de me poderem levar a treinar a equipas profissionais que existiam na altura perto da cidade onde estudei.
Muitos anos mais tarde tentei realizar aos meus filhos os seus sonhos, que no fundo também eram meus, e que talvez por serem rapazes e sempre viverem no mundo do desporto, desde muito cedo decidiram enveredar também pela prática desportiva, ambos no futebol. O mais velho acabou também por praticar futsal até aos dias de hoje. Neste contexto, e com a presença assídua e quase diária nos treinos e nos jogos, quer minha, quer da minha esposa (igualmente enfermeira), sempre considerei que teríamos maior utilidade ajudando igualmente o clube/associação onde os nossos filhos praticassem desporto, assumindo o papel de Enfermeiros dessas equipas, onde tivéssemos papel ativo, não só nos cuidados emergentes de bem-estar, procurando sempre a satisfação dos jogadores, mas também na promoção da saúde e na prevenção de complicações. Tudo sempre dentro de um enquadramento conceptual onde a saúde, o atleta e o ambiente que nos rodeia originava os melhores cuidados de enfermagem que em qualidade poderíamos prestar.
Com toda esta aprendizagem, partilha e adaptação constante à evolução, quer das exigências desportivas, quer das performances dos atletas, e como continuo a adorar o uso da metodologia desportiva como fonte de prazer e de saúde, fui em 2014 convidado pela nova direção de um dos clubes desportivos mais antigos da cidade de Viseu, que assinalou nessa altura 90 anos de existência, a organizar os cuidados de saúde e logicamente de enfermagem de toda a coletividade. No seguimento do convite, sou atualmente o coordenador do corpo clinico do Sport Viseu e Benfica (quem diria!?...), que é constituído por enfermeiros, médico, fisioterapeuta e massagista, e que tem ao seu cargo cerca de 500 atletas nas modalidades de Futebol, Ténis de Mesa e Atletismo. Não sendo uma tarefa fácil, com uma boa metodologia de trabalho, organização e muita paixão pelo que fazemos, consegue-se conciliar a essência do saber SER, do saber ESTAR e do saber FAZER da enfermagem com o bem-estar biopsicossocial que a atividade desportiva nos privilegia diariamente, contribuindo ao mesmo tempo para uma maior visibilidade social desta profissão.
E a conciliação dessas várias vidas com atividades associativas e cívicas?
HL: Conciliar várias atividades associativas, cívicas e desportivas com a vida profissional e familiar nunca foi tarefa fácil, principalmente porque as mesmas carecem de disponibilidade temporal, mas sobretudo de mental e até física. Felizmente, e além da minha procura incessante pelo conhecimento e pela melhoria contínua, e sobretudo por não ser apenas mais um, mas sim uma força motivadora, integradora e sobretudo interventiva junto da sociedade a que pertenço, tenho um suporte familiar que compreende e até integra algumas destas intervenções, auxiliando mutuamente a realização das mesmas, planificando e adequando as realidades às necessidades mais urgentes, tendo sempre em consideração as preferências ou as escolhas individuais, mas sempre em prol de um bem comum. Tento estar onde posso ser necessário. Nem sempre o consigo, é verdade, mas na medida do possível penso ter conseguido fazê-lo, apesar das contingências, das dificuldades, do sofrimento e da incapacidade de não ser omnipresente.
Que contributos dessas experiências leva para a Enfermagem?
HL: Tal como já descrevi, neste percurso de vida, algum dele realizado de forma espontânea e sem planeamento prévio, limito-me a aproveitar as experiências que se me depararam. Foram muito ricas em todas as vertentes humanas, quer pessoais, quer profissionais. Se repararmos, e basta pensarmos um pouco no constructo de um enfermeiro, a arte do cuidar, de intervir, de formar, de ensinar, de auxiliar, de capacitar, de empatizar, de liderar, de prescrever, de trabalhar, de suplantar, de readaptar, de pensar e de amar, necessárias para um desenvolvimento profissional tido como adequado e essencial, foram sem dúvida nenhuma experienciadas no caminho que fui fazendo até aos dias de hoje. Claro que nem sempre esse caminho foi bem-sucedido, mas no geral poderei dizer que sou muito mais o que assimilei e fui aprendendo com quem me fui cruzando, do que a simples e masoquista carga genética que nasceu e cresceu comigo. No fundo, considero que aquilo que sou o devo essencialmente às pessoas, à sua humanitude, à sua capacidade de se superarem, à sua necessidade de buscarem insistentemente a felicidade plena. Ou, por outro lado, à sua incapacidade de lidarem com a finita corporalidade de serem simplesmente um recipiente de emoções!
Sou adepto do trabalho multidisciplinar, que nesta área da saúde é fundamental, desde que cada par saiba desempenhar as suas funções, saiba qual o seu papel no seio do grupo, sempre de forma honesta, íntegra e respeitadora. Considero que o enfermeiro é o pilar da equipa e pessoa de referência para o cidadão. Saibamos nós intervir e mostrar as nossas capacidades técnicas e comunicativas, pois, tal como refere o desígnio fundamental da OE, ele é o defensor da qualidade dos cuidados prestados ao cidadão. Essa aprendizagem foi na sua grande parte construída no seio das experiências dos vários grupos por onde passei, e que consolidaram este desidrato: pelas pessoas, com os enfermeiros!
É também um dos primeiros enfermeiros em Portugal formados em sexologia… O que mais o seduz enquanto terapeuta sexual?
HL: Realmente tive a sorte de integrar em 2010 o V Curso de Pós-Graduação em Terapia Sexual, da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clinica, o único em Portugal que nos atribui o título de “Sexólogo Clinico”. Este foi até à data o primeiro e o único que abriu vagas a profissionais de enfermagem (??), lógica bastante questionável e que já foi motivo de uma carta de protesto dirigida à direção da referida sociedade. Somos apenas 3 enfermeiros no país com esta competência aprovada, sendo que apenas dois trabalham nesta área específica.
Todos os seres humanos são, do ponto de vista biológico, seres sexuados. A sexualidade, porém, vai muito além da anatomia ou fisiologia. Ao longo dos anos a nossa sexualidade ou o modo como a vivenciamos vai sendo diferente. A sexualidade integra o conhecimento, as atitudes, os valores e os comportamentos dos indivíduos. A expressão da sexualidade é influenciada por fatores de natureza ética, espiritual, cultural e moral. É importante que as experiências e vivências da sexualidade sejam sempre fontes de bem-estar, para nós e para os outros com quem as partilhamos. Desde que me formei em enfermagem - sendo esta área considerada uma necessidade humana básica - tentei alargar sempre os meus horizontes e integrar esta procura na arte de bem cuidar. Nos dias que correm isso ainda não é tarefa fácil, quanto mais há 20 anos atrás… Percebi que, mais do que um mero executor de técnicas, conseguia desde cedo ser empático, assertivo e comunicativo o bastante para criar nos utentes/cidadãos a confiança necessária e suficiente no derrube de barreiras tidas como inultrapassáveis, o que originava uma capacidade de abertura, ajuda e relacional surpreendentes. Apenas me faltava a componente técnico-científica, que vim a adquirir mais tarde.
É um grande desafio para um terapeuta responder às solicitações de uma vivência sexual mais duradoira numa sociedade de crescente longevidade?
HL: As dificuldades e dúvidas relacionadas com a sexualidade, como a falta de desejo sexual, disfunção erétil, dificuldades da excitação sexual feminina, ejaculação prematura, dificuldades do orgasmo, dor durante as relações sexuais, insatisfação sexual, e outros problemas relacionais ou conjugais associados à esfera sexual, são alguns dos principais problemas que afetam a saúde sexual dos portugueses e que os levam a procurar ajuda especializada. A prevenção e possível solução para estas problemáticas passa muito pela abertura em assumir os problemas a este nível, e em procurar ajuda terapêutica, numa perspetiva de crer que a saúde em termos gerais passa, inevitável e incontornavelmente, pela saúde sexual.
Considero que é aqui que o terapeuta sexual entra, pois continua a haver bastante resistência em queixar-se ou procurar ajuda junto dos profissionais de saúde no que toca a problemas relacionados com a sexualidade. Em parte porque continuam a existir tabus e preconceitos relacionados com o assunto, muitas vezes dos próprios profissionais, mas também por desconhecimento e dúvidas acerca do local ou a que profissional devem recorrer. É aqui que o enfermeiro, com competências nesta temática, poderá ter um papel de extrema importância, aliando a sua capacidade de diagnosticar, de decidir autonomamente e de intervir prescritivamente, à prática diária baseada na evidência científica. Pode muito bem assumir o papel de “pivô” ou técnico de referência do utente ou casal que procura uma vivência sexual mais duradoira e satisfatória.
Neste sentido, sempre lutei para que existisse uma consulta multidisciplinar de sexologia no centro hospitalar onde exerço as minhas funções, capaz de dar resposta a toda esta imensidão de dificuldades. O trabalho em equipa é, na minha opinião, a melhor e mais cabal forma de dar uma resposta eficaz e adequada a todo o tipo de problemáticas/disfunções que abrangem a sexualidade humana. Tive a felicidade de ter encontrado as pessoas certas no momento certo, que igualmente partilhavam dos meus ideais. Conjugando um urologista, uma psiquiatra, uma ginecologista, uma psicóloga e um enfermeiro (estes últimos com formação em sexologia clinica), todos motivados e ávidos de saber, inaugurámos em setembro de 2006 a Consulta de Sexologia do Centro Hospitalar Tondela Viseu, EPE, a 2ª na zona centro do País (havendo uma outra no CHUC em Coimbra). Permanece até aos dias de hoje com números cada vez mais dilatados, a não conseguimos dar resposta em tempo oportuno pelo número exponencial de utentes que nos procuram.
Nota Biográfica:
Hélder Abel Chaves Ferreira Lourenço nasceu em 1969.
Iniciou a atividade de enfermeiro em Janeiro de 1992 no Hospital Distrital de Lamego. Desde 1995 exerce no Hospital São Teotónio de Viseu (Centro Hospitalar Tondela-Viseu, EPE).
É Enfermeiro Especialista em Saúde Mental e Psiquiátrica desde 2001.
Em 2012 é uma dos três enfermeiros em Portugal a obter o grau de Sexólogo Clínico, pela Sociedade Portuguesa de Sexologia (SPSC).
Desde janeiro de 2012 é Presidente do Conselho de Enfermagem Regional do Centro da Ordem dos Enfermeiros.
É secretário e tesoureiro da Sociedade Portuguesa para o Estudo da Saúde Mental (SPESM).