Entrevista: O impacto da pandemia na saúde mental

«Vivemos aquilo que a teoria do ecobiodesenvolvimento designaria de “stress tóxico”»

Atualizado: 
12/10/2020 - 12:19
A Pandemia Covid-19 não veio apenas mudar a forma como vivemos, veio alterar padrões de comportamento que podem ter repercussões gravíssimas ao nível da saúde mental das populações, durante os próximos anos. Em entrevista ao Atlas da Saúde, Miguel Durães, Presidente da Recovery IPSS, uma instituição sem fins lucrativos que atua na área da saúde mental, alerta para a necessidade de maior investimento na área. “Há consequências que podem já ser observadas a curto prazo, como: irritabilidade, medos, transtorno do sono, diminuição das defesas do sistema imunitário; e a médio e longo prazo: transtornos de ansiedade, atraso no desenvolvimento e depressão”, revela, chamando a atenção para uma realidade que não atinge apenas adultos, mas também crianças e jovens.

AdS - Se é verdade que o isolamento é importante para proteger a nossa saúde física, impedindo o contágio pelo vírus, também é verdade que quanto mais tempo estivermos isolados maiores serão os riscos de sofrermos doenças psiquiátricas. Sabe-se aliás que a quarentena pode originar uma constelação de sintomas psicopatológicos, designadamente, humor deprimido, irritabilidade, ansiedade, medo, raiva, insónia, entre outros. Tendo em conta a sua experiência, que dados dispõe quanto ao impacto que a pandemia está a ter na saúde mental dos portugueses?

Antes de mais, em nome da RECOVERY, uma IPSS sem fins lucrativos, gostaria de agradecer o convite para esta entrevista, assim como, a atenção para com a nobre causa que defendemos diariamente – a Saúde Mental.

A pergunta é muito pertinente porque vai ao encontro da observação direta que temos tido no trabalho diário que desenvolvemos no âmbito das unidades de saúde que dispomos – uma unidade para adultos com perturbações de saúde mental grave e aquelas que se constituíram nas primeiras duas unidades de cuidados continuados integrados de saúde mental para a infância e adolescência da história do nosso país (uma de tipologia de internamento e outra de regime de ambulatório).

Já havíamos constatado e alertado para o facto das consequências da pandemia COVID-19 terem uma relação causal muito significativa com o aumento de situações preocupantes em matéria de saúde mental. Um inquérito divulgado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) a propósito do Dia Mundial de Saúde Mental, que se assinalou há dias (10 de outubro), vem confirmar precisamente esta difícil realidade. A pandemia COVID-19 interrompeu ou suspendeu serviços essenciais de saúde mental em 93% dos países do mundo, numa altura em que a procura de assistência aumentou e está a aumentar. Segundo o Diretor do Programa Nacional para a Saúde Mental, Professor Miguel Xavier, personalidade na qual nos revemos inteiramente e cujo plano nacional para a saúde mental defendemos acerrimamente, refere que no nosso país nós ainda fomos dando resposta porque o número de consultas em psiquiatria e em psiquiatria da infância e adolescência não baixou, subiu. Existiu um cuidado em manter e não interromper os cuidados prestados às pessoas que eram seguidas nestes serviços. No caso das nossas unidades, contratualizadas com os organismos competentes do Ministério da Saúde e do Ministério da Segurança Social, sucedeu o mesmo. Mantivemos o nosso apoio especializado e continuamos a responder às situações dramáticas das pessoas e suas famílias, desde março – início da pandemia – até ao momento. 

No entanto, esta pandemia veio colocar em foco algo que há muito as evidências científicas já vinham alertando – os contextos económicos, sociais e culturais têm um impacto enorme na saúde mental das pessoas. Assim como, a falta de investimento na saúde mental tem consequências muito graves nas pessoas e, de igual modo, nas próprias economias e sociedades ditas modernas.

A incerteza profissional, o desemprego, problemas acrescidos na prestação de cuidados básicos (como por exemplo, na alimentação, educação, habitação/rendas, etc…), os problemas conjugais e familiares acrescidos, o ambiente familiar tenso e pouco equilibrado, a dificuldade no acesso a muitos serviços da sociedade, a incerteza relativamente à solução para esta situação pandémica de saúde, está relacionada com o aumento e o exacerbamento de problemas de saúde mental, situações de stress tóxico e sofrimento psicológico agudo e crónico.

Atualmente é possível comparar o impacto e a carga social em termos de custos diretos e indiretos que várias especialidades da saúde têm nas sociedades e o que constatamos é que a doença mental surge sempre ou em primeiro ou em segundo lugar com uma carga global de cerca de 10 a 15%. Ora, apesar de reconhecer o esforço que tem sido feito nesta área por parte dos organismos competentes na área da Saúde, não é difícil perceber que o financiamento e o investimento da Saúde deveria ser muito maior na Saúde Mental do nosso país (cerca de 4% atualmente).

AdS - Não foram só aqueles que já apresentavam algum tipo de distúrbio a sentir este impacto…

Sim, não querendo de todo generalizar, pode-se inferir que em pessoas que não apresentavam sintomas antes da pandemia COVID-19, se verifica um surgimento de quadros clínicos significativos na área da depressão, da ansiedade e, na infância e adolescência, alterações com consequências preocupantes na área do desenvolvimento. Por outro lado, em pessoas que já apresentavam um quadro clínico grave, assistimos ao agravamento da sua sintomatologia com situações de sofrimento psicológico significativo, quer para a pessoa, quer para os seus familiares/cuidadores informais.

AdS - Quais as principais queixas apresentadas pela população? Houve agravamento de patologias pré-existentes? Que tipo de distúrbio se desenvolveu durante este período excecional?

É sempre necessário ter presente que vivemos tempos completamente excecionais na humanidade e, em particular, no nosso país. A verdade é que uma situação de pandemia como a que vivemos – assim como numa situação de crise, catástrofe ou situação de emergência - algumas necessidades básicas, como por exemplo a segurança individual e coletiva, estão em causa de forma transitória. Neste caso, do COVID-19, acresce o facto de se juntar um princípio de incerteza maior porque sabemos que esta situação só se irá resolver “completamente” até surgir uma vacina e/ou tratamento eficaz e isto acarreta consequências difíceis e exigentes ao nosso quotidiano.

Podemos dizer que todos, de forma muito generalizada, vivemos aquilo que a teoria do ecobiodesenvolvimento designaria de “stress tóxico”. Algo que se desenvolve precisamente em ambientes caóticos e é um tipo de stress forte, frequente e com ativação prolongada no organismo sem mecanismos de proteção que possam reduzir os impactos dos efeitos ou consequências das situações stressoras. Por exemplo, situações consideradas adversas desencadeiam uma reposta fisiológica de elevação de hormonas de stress na infância (ex: cortisol e adrenalina), gerando uma sobrecarga no sistema cardiovascular e riscos ao desenvolvimento saudável do cérebro. Ao experienciarmos situações de stress tóxico, há consequências que podem já ser observadas a curto prazo, como: irritabilidade, medos, transtorno do sono, diminuição das defesas do sistema imunitário; e a médio e longo prazo: transtornos de ansiedade, atraso no desenvolvimento e depressão.

No caso daqueles que já apresentavam um quadro clínico grave, podemos constatar, por exemplo, um agravamento de sofrimento significativo em pessoas com perturbações obsessivo-compulsivas, com depressões major, e até uma probabilidade exponencial de descompensações psicóticas em alguns quadros clínicos de personalidade e esquizofrenia.

AdS - Em termos económicos e sociais, o que isto representa ou poderá vir a representar?

O estudo da OMS e os dados que possuímos atualmente e que falei há pouco são bastante claros. Em termos de custos diretos e indiretos que as várias áreas da saúde têm nas sociedades o que se verifica é que a doença mental surge sempre em primeiro ou em segundo lugar com uma carga global de 10 a 15%. Se o investimento no nosso país na saúde mental continuar a ser apenas de 4 a 5%, pode-se concluir que estes problemas que abordamos vão piorar e ter consequências sociais, de saúde pública e económicas intangíveis e imprevisíveis. Reforço que em matéria da Saúde Mental temos traçado um caminho correto no nosso país, precisamos, no entanto, que exista um reforço significativo no investimento e financiamento das políticas e respostas previstas no plano nacional para a saúde mental que temos e que é sobejamente reconhecido por todos os organismos competentes nacionais e internacionais.

AdS - Há alguns estudos que mostram que o impacto da pandemia se pode fazer sentir até três anos após o seu início. Este dado preocupa-o? O que pode ser feito no sentido de acompanhar estes doentes, o que pode melhorar tendo em conta a importância que atualmente é dada à saúde mental?

É verdade. Aliás, o impacto da pandemia pode, inclusive, em alguns casos, ter repercussões para toda a vida de um jovem ou adulto e seus familiares. Considero que é importante tomar algumas medidas que são muito urgentes no nosso país. Entre muitas outras previstas no plano nacional para a saúde mental, considero urgente e necessária a criação de equipas comunitárias de saúde mental em todas as regiões, o reforço do investimento nos cuidados de saúde primários e unidades locais de saúde mental, assim como, o reforço no apoio e reabilitação destas pessoas e seus familiares. É necessário continuar com o processo de criação de respostas na comunidade como as unidades de cuidados continuados integrados de saúde mental com tipologias na área da infância e adolescência, adultos e senescentes. Estas unidades fazem a ponte com a comunidade na esfera da reabilitação clínica, pessoal, familiar, profissional, educacional e habitacional. Previnem situações futuras e atuam remediativamente em situações complexas presentes. É necessário e urgente que medicamentos como os antipsióticos possam ser disponibilizados como eram até 2010, gratuitamente. Sabemos, especialmente em situações de crise pandémica com consequências económicas como a que vivemos, que as pessoas e famílias tendem a cortar em gastos como a medicação. Esta situação é alarmante. Estes medicamentos devem, como são em outras especialidades na área da saúde, ser disponibilizados gratuitamente a todos sem exceção.

AdS - Não sendo só a vida dos adultos a ser impactada pela pandemia, de que forma esta veio afetar a saúde mental das crianças e jovens?

Esta pergunta é muito pertinente. Aliás, não podemos esquecer que as crianças e jovens são o futuro de qualquer sociedade. São eles que vão liderar e comandar os destinos de qualquer país. Nesse sentido, se tivermos crianças e jovens a crescer em ambientes tóxicos e doentes, aumenta a probabilidade de podermos vir a ter um problema ainda mais sério nas próximas décadas.

É obvio que a situação que vivemos não é saudável para qualquer pessoa, seja ela uma criança seja ela um adulto. No entanto, alerto para o facto de quadros de ansiedade generalizada, depressão e de desenvolvimento se estarem a formar como consequência do contexto sanitário que vivemos atualmente.

As crianças são como esponjas, absorvem toda a água que os rodeia. Neste sentido, não foram feitas para viver numa espécie de “bolha” 24h sob 24h. E isso traz as suas consequências. Se aos sintomas que falamos há pouco, acrescentarmos ambientes familiares tensos e adversos, sejam por causa da incerteza profissional e económica dos pais, sejam por problemas conjugais dos mesmos, então o processo de desenvolvimento daquela criança e jovem vai ser ainda mais desafiante e potencialmente adverso.

AdS - Que repercussões podem existir no futuro?

A curto prazo, podemos assistir a problemas de irritabilidade, labilidade de humor e de emoções, problemas de sono, alimentação, concentração e atenção, entre muitos outros. A médio e longo prazo podemos assistir a problemas de transtornos de ansiedade, depressão e desenvolvimento significativos.

AdS - Na sua opinião, o que assusta mais as crianças e jovens: este regresso à “normalidade” com escola presencial ou a possibilidade de voltarem a ter de ficar em casa com telescola?

Por vezes temos que ter cuidado com as palavras que escolhemos para não sermos mal-interpretados. Ambos os cenários têm efeitos adversos nas crianças porque vivemos uma situação excecional de crise pandémica, de saúde pública.

Conforme mencionei há pouco, o ser humano não foi feito para viver 24h sob 24h dentro de quatro paredes. Assim como, também não está preparado para viver sempre com um “principio da incerteza” relativamente à sua saúde e à saúde dos que os rodeiam.

Porém, sou daqueles que considera que o distanciamento social é diferente do distanciamento físico. E que, é genericamente mais adaptativo para o desenvolvimento de uma criança ou jovem viver e conviver socialmente seguindo, claro, as medidas recomendadas de proteção individual, do que estar confinado em casa de forma continuada.  O ser humano, aqui em especial as crianças e jovens que tem ainda uma série de questões físicas e psicológicas em desenvolvimento, precisa de alguma estrutura nas suas vidas. Estrutura dá sentido ao que fazemos. Ter um sentido na vida é essencial para enfrentarmos os desafios do presente e do futuro.

Neste sentido, para uma criança e jovem, se a família é o primeiro microssistema mais importante para o seu desenvolvimento, a escola será o segundo mais importante. Defendo o ensino à distância, sempre que a segurança ou a integridade física individual ou coletiva se justificar. No entanto, em matéria de saúde mental, e tendo por base o contexto excecional e desafiante que vivemos, considero um mal menor que as crianças e jovens mantenham um contacto com a escola e se mantenham, sempre que possível, em contacto com esta estrutura basilar para desenvolvimento humano de cada um de nós. Isto mantendo, claro, um sentido de responsabilidade individual possível (dependendo das idades/faixas etárias), que deve ser reforçado por todos em casa e sociedade.

AdS - Quais os principais receios das crianças nesta altura?

Os principais receios podem ser vários e de vária índole e dependem muito da faixa etária e do contexto em que se encontrem.

No entanto, de forma genérica, os principais medos estarão relacionados com os problemas que falamos anteriormente nomeadamente naqueles que os rodeiam e representam as suas redes de suporte básico e principal, assim como, com a sua própria saúde e anseios relacionados com as relações interpessoais, socialização e objetivos de vida imediatos.  

AdS- De que forma, podem os pais aliviar as preocupações das crianças?

Uma comunicação próxima e aberta com as crianças é essencial para identificar quaisquer problemas físicos ou psicológicos e para confortar as crianças numa situação de stress prolongado como a que vivemos atualmente. É importante motivar as crianças a manter um estilo de vida saudável em casa e na escola, a aumentar as atividades físicas, a manter uma dieta equilibrada, bons hábitos de sono e uma boa higiene pessoal.

Não devemos esquecer que os adultos são exemplos importantes de modelação de comportamentos saudáveis para as crianças e para as ajudar a desenvolver a sua autorregulação. Além de monitorizar o estado de saúde e de bem-estar das crianças, é fundamental respeitar a sua identidade e as suas necessidades. Manter uma rede de apoio psicossocial, com vizinhos, amigos ou familiares, pode ser particularmente importante em momentos como este. Também é muito importante reforçar as recomendações das autoridades sanitárias competentes no que concerne às medidas de proteção e de responsabilidade individual que devemos ter no exterior, nomeadamente, no local onde passam mais tempo – a escola.

Por fim, e não mesmo importante, é expectável que conflitos domésticos e a tensão entre os adultos aumentem, assim como, a ansiedade e o medo de serem infetados. Temos de ter um especial cuidado relativamente a estas situações, evitando ao máximo proporcionar um ambiente tóxico adicional a nível micro ao que já existe a nível sanitário social a nível macro.

Se os adultos se demonstrarem excessivamente preocupados, a ansiedade das crianças tende a aumentar. Para ajudar as crianças a lidar com a ansiedade, é importante fornecer informações apropriadas à idade sobre a gravidade e o potencial risco de doença e instruções concretas sobre como evitar infeções - como ensinar a importância de lavar as mãos, de evitar esfregar os olhos, usar máscara, entre outros. Desenvolver esses hábitos e conversar com as crianças sobre os seus medos pode aumentar a sensação de controlo sobre o risco de infeção e pode ajudar a reduzir a ansiedade.

AdS - Sabendo que muitas famílias viram os seus rendimentos afetados pela pandemia, e que nem todas podem recorrer a serviços privados para receber apoio psicológico, que alternativa dispõem se precisarem de ajuda?

Devem recorrer aos serviços públicos sempre e, em casos de dificuldade no acesso, como por exemplo os que são conhecidos no acesso aos cuidados de saúde primários, devem contactar as linhas de apoio psicológico do SNS disponíveis pela Saúde24, assim como, procurar as organizações e instituições existentes na sociedade, região ou área de residência. Instituições como a nossa, por exemplo, existem para apoiar e ajudar nestas e outras situações angustiantes. Não podendo apoiar, ajudam sempre na procura e descoberta de soluções! O importante aqui é não deixar de procurar ajuda profissional especializada e, na situação de crise sanitária que vivemos, é determinante que as pessoas não se sintam “sozinhas” ou desamparadas. 

AdS - No âmbito deste tema, que conselhos pode deixar, não só para adultos mas como para crianças mais fragilizadas pela pandemia?

Reforçando o que já mencionei anteriormente relativamente às medidas que podemos tomar a nível governamental, estrutural e familiar/individual, deixo um final apontamento para reflexão: “Nenhum homem é uma ilha, completo em si próprio; cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo”. Traduzindo esta máxima para a realidade atual que vivemos, pretendo dizer que existem problemas que nos afetam a todos e que será com a responsabilidade de todos que iremos sair dos mesmos. Devemos continuar focados em seguir com as nossas vidas, mantendo sempre a responsabilidade individual que se nos é exigida até que uma vacina e/ou tratamento eficaz surja a nível coletivo. Se tiverem problemas de saúde mental, sintam que não estão sozinhos. Procurem ajuda especializada, continuamos todos cá para ultrapassarmos estes desafios em conjunto.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
Foto: 
Recovery IPSS