No âmbito da Doença Mental

A urgência de Cuidar de Quem Cuida

Atualizado: 
06/07/2023 - 17:13
Em muitos dos países ocidentais, a desinstitucionalização dos serviços realçou a importância e, acima de tudo, a necessidade, do apoio dado aos utentes por parte da comunidade, inclusive da família e dos cuidadores que desempenham um papel vital na vida daqueles que experienciam problemas do foro psiquiátrico. Este apoio é dado, quer a nível emocional, social e instrumental, quando articulam, forte e regularmente, com os serviços de saúde mental nos quais os utentes estão inseridos (no caso de existir essa inserção).

Não são necessárias estatísticas para que tenhamos conhecimento que muitos dos cuidadores informais e/ou familiares das pessoas com experiência de doença mental, frequentemente, se vêm forçados a abdicar do seu trabalho para poderem prestar os devidos cuidados a essas pessoas. Nas situações em que isto não acontece, muitas são as atividades e momentos que acabam por ficar comprometidos, pois sabemos que a disponibilidade para cuidar destas pessoas ocupa a maioria do tempo livre que poderia ser utilizado pelos cuidadores para o exercício de outras tarefas e compromissos, nomeadamente, para cuidarem de si próprios e do seu bem-estar.

Embora o foco da maioria dos serviços de saúde mental (enquadrados no SNS) seja, principalmente, no utente a título individual, não nos podemos esquecer da necessidade e, até, responsabilidade de também apoiar aqueles que cuidam desse. Este facto revela-se ainda mais urgente quando as pessoas cuidadas não estão inseridas numa resposta social. Este apoio, assim como muitos outros é escasso. Portugal, para além de não responder à pluralidade das necessidades das pessoas com experiência de doença mental, também falha no apoio às suas famílias e cuidadores. Algumas mudanças estão a ser feitas, na teoria, mas estão longe de se apresentarem como suficientes na prática. Tenho plena consciência de que nada do que está escrito neste artigo é novidade, quer para o profissional na área da saúde, quer para qualquer cidadão mais atento.

Enquanto Terapeuta de Referência num Fórum Socio-Ocupacional de Adultos com Doença Mental Grave, vejo-me, diariamente, confrontada com a fadiga emocional e, muitas vezes, física daqueles que cuidam e apoiam, diariamente, a pessoa com experiência de doença mental, nomeadamente, os familiares e cuidadores. Tal como os familiares, os membros da equipa técnica - enquanto seres humanos que são - podem também acusar fadiga, pois são estes que, juntamente com os cuidadores informais, vivem e experienciam, diretamente, tudo o que acontece com o utente. Sabemos, no entanto, que um técnico possui mais estratégias para lidar com as oscilações e diferentes necessidades que o utente vai apresentando ao longo do dia, no entanto, dentro do contexto familiar são os familiares que têm de lidar - muitas vezes, sem estratégias - com essas experiências, sejam elas momentos positivos - em que os utentes se encontram motivados e colaborativos - quer sejam momentos menos bons, em que o simples levantar da cama pela manhã se revela um desafio quase impossível de ser superado. Trata-se de um trabalho invisível que, muitas vezes, não é reconhecido e que, apesar disso, estas pessoas, muitas vezes exauridas e elas próprias com necessidade de receber cuidados, se vêm obrigadas a assumir-se como abrigos de outras tão ou mais doentes.

Face a isto, há a necessidade urgente de cuidar de quem cuida, apoiar financeiramente, socialmente e emocionalmente aqueles que dão abrigo, apesar de serem eles próprios quem dele necessitam. É urgente diminuir a carga emocional destas pessoas que, dia após dia, se vêm confrontadas com situações bastante complexas com as quais têm de lidar e se veem desesperadas por respostas sem as conseguir encontrar.

A intervenção dos técnicos da instituição à qual pertenço vai muito para além do que é expectável, muito para além do que está acordado no papel. Existe, efetivamente, a preocupação e o sentimento de dever para com aqueles que cuidam dos outros porque nós próprios sabemos o quão difícil, muitas vezes, é fazê-lo. Por essa razão, são diversas as ocasiões em que tomamos iniciativa (dentro do que nos é possível, claro), de criar momentos e espaços de partilha desprovidos de preconceitos ou julgamentos, onde seja possível desabafar e partilhar informações, assim como de elaborar estratégias que permitam aos cuidadores e familiares se capacitarem (ainda mais) para o processo diário que os cuidados prestados exigem. São ainda criados momentos de lazer que, para além de permitirem ao cuidador/familiar espairecer daquela que é uma rotina pesada e sem espaço, muitas vezes, para diversão, enriquecem essa própria rotina e permitem estreitar os laços que, muitas vezes, se veem desgastados pela exigência que os cuidados prestados requerem. Trata-se, então, de organizar diversas atividades dos mais diversos âmbitos que acabam por aproximar, ainda mais, o cuidador/familiar da pessoa com experiência de doença mental fora de um contexto de prestação de cuidados, mas num ambiente de diversão conjunta.

Em suma, haja empatia e, acima de tudo, reconhecimento e investimento nestas pessoas que tantas vezes fazem trabalho, que apesar de invisível se revela imprescindível para a vida de outras tantas. Esta empatia é crucial, pois tal como afirma Soeiro, Araújo e Figueiredo (2020) «em algum momento das nossas vidas, todos precisaremos dos cuidados de outros e todos seremos, provavelmente, cuidadores de alguém».

Autor: 
Bruna Sousa - Assistente Social na RECOVERY IPSS
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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