Entrevista | Dra. Clara Gomes, especialista em Nefrologia Pediátrica do Hospital Pediátrico de Coimbra

Transferência do cuidado do paciente pediátrico ao adulto: «Idealmente deveria haver uma consulta de transição»

Atualizado: 
04/12/2023 - 14:50
De acordo com Clara Gomes, especialista em Nefrologia Pediátrica do Hospital Pediátrico de Coimbra, a transferência do cuidado do paciente pediátrico ao adulto deve ter como objetivos a redução da perda de seguimento dos doentes e melhorar a qualidade de cuidados na vida adulta e o prognóstico da doença. Em entrevista ao Atlas da Saúde, descreve o processo salientando que o mais importante é transmitir confiança ao paciente e seus familiares, estando totalmente disponível para esclarecer qualquer dúvida que surja, não só junto destes como do novo médico assistente. “O jovem e família devem sentir segurança e confiar que o médico de adultos conhece bem a doença e que teve um conhecimento personalizado do seu caso”, finaliza.

O que é XLH e quais os sinais a que devemos estar atentos? Como é feito o seu diagnóstico?

O raquitismo hipofosfatémico ligado ao X ou XLH, é uma doença hereditária, rara, causada por alterações num gene localizado no cromossoma X, o gene PHEX. Esta alteração promove o aumento de uma hormona, o fator de crescimento dos fibroblastos 23 (FGF23) que aumenta a eliminação de fosfato e reduz a síntese da vitamina D ativa, o calcitriol a nível renal. 

A baixa do fosfato (hipofosfatémia) e a diminuição da vitamina D impedem a normal mineralização óssea e dentária. As consequências são o aparecimento de deformidades ósseas, sobretudo a nível dos membros inferiores com arqueamento das pernas e coxas, o atraso na aquisição da marcha, uma marcha alterada, bamboleante e atraso de crescimento com baixa estatura. Nas crianças outros sinais incluem bossas frontais por fusão prematura de suturas, craniossinostose e atraso na erupção dentária. A mineralização deficiente da dentina favorece abcessos dentários recorrentes e precocemente. Mais tarde podem surgir queixas de dor óssea e fraqueza muscular e problemas de audição por esclerose dos ossículos do ouvido.

As deformidades dos membros inferiores surgem quando a criança começa a andar, entre o primeiro e segundo ano de vida. Podem confundir-se com desvios fisiológicos dos membros que ocorrem nesta idade, no entanto no XLH as deformidades são progressivas. 

Quando há história familiar de XLH o rastreio da doença na criança deve ser feito logo no primeiro mês de vida. É necessário conhecer a forma de transmissão ligada ao cromossoma X: os pais transmitem sempre a doença às filhas e nunca aos filhos, as mães podem transmitir a doença aos filhos e filhas com um risco de 50% em cada gestação. Em cerca de 20% dos casos a doença ocorre por mutação de novo, não havendo história familiar.

A confirmação diagnóstica inclui uma avaliação analítica, radiológica e estudo genético. Na avaliação laboratorial a elevação da fosfatase alcalina sérica, a diminuição do fosfato sérico com cálcio normal e a eliminação urinária aumentada de fosfato, avaliada pela taxa de reabsorção do fosfato, são os achados típicos. Pode ainda dosear-se o FGF23 que está elevado ou inapropriadamente normal para os níveis da fosfatémia.

A radiologia mostra sinais de raquitismo como as deformidades ósseas dos membros inferiores, alargamento e irregularidade das extremidades dos ossos longos onde ocorre crescimento mais rápido.

O estudo genético é importante porque se identificar uma mutação no gene PHEX, diagnostica o raquitismo como sendo ligado ao X, e nesta situação, pode usar-se uma terapêutica específica.

Dada a raridade da doença e a apresentação inicial, que se pode confundir com variantes fisiológicas, é comum haver um atraso no diagnóstico. 

Quais os principais desafios desta patologia, tendo em conta a sua experiência (não só quanto ao diagnóstico, se os houver, mas como famílias encaram a doença e o tratamento, quais as principais dúvidas e angústias que lhe transmitiam)?

O primeiro desafio consiste no diagnóstico precoce o que vai permitir iniciar a terapêutica e prevenir a progressão da doença, favorecendo o crescimento, a estatura final, aquisição de massa óssea e saúde dentária. 

Quando há história familiar é muito importante valorizá-la como já referido. 

Por vezes os resultados analíticos podem ser controversos e o estudo genético constitui uma ajuda fundamental.

Sendo uma doença multissistémica, que vai durar a vida toda, é um diagnóstico pesado para a família que o encara sempre com muita apreensão.  

Quando existem familiares cuja doença já evoluiu, algumas vezes sem terem tido acesso a terapêutica como alguns avós que acompanham as crianças nas consultas, e que apresentam sequelas significativas – deformidades ósseas, dores osteoarticulares, alterações dentárias e surdez -a preocupação é acrescida. Por outro lado, o familiar doente sente ainda o peso de ter sido o responsável pela transmissão da doença.

É necessário explicar a fisiopatologia e esclarecer que tem havido progressos nos tratamentos e o cumprimento da medicação pode minorar as sequelas. 

Existem duas modalidades de tratamento: a terapêutica convencional, com várias administrações diárias de fosfato oral e de vitamina D ativa, e a terapêutica mais recente que consiste num anticorpo monoclonal dirigido ao FGF23, o burosumab administrado quinzenalmente sob a forma de injeção subcutânea. Com a terapêutica convencional, já usada há várias décadas, tenta-se repor as perdas de fosfato e os níveis de vitamina D ativa, mas não se consegue normalizar a fosfatémia e é difícil de cumprir as várias administrações diárias, sobretudo na adolescência.

O burosumab ao neutralizar o FGF23 corrige o defeito básico e consegue normalizar os níveis de fosfato e de vitamina D ativa. Os estudos ainda têm poucos anos, mas têm mostrado um efeito positivo sustentado no metabolismo do fosfato, nos sinais de raquitismo e redução das deformidades ósseas. Na nossa experiência, temos verificado recuperação de deformidades ósseas já instaladas, após alguns meses de utilização. As famílias têm aderido bem a esta terapêutica e na adolescência a compliance melhorou significativamente.

Como deve ser acompanhamento de um doente pediátrico com XLH?

Como é uma doença multissistémica a equipe deve ser multidisciplinar incluindo além de Endocrinologia ou Nefrologia Pediátrica, Ortopedia, Estomatologia, Otorrinolaringologia e Nutrição, entre outros.

O acompanhamento deve ser regular com avaliações de sinais clínicos (crescimento, deformidades, dentição), controles analíticos e radiológicos.

O tratamento convencional tem algumas complicações e para se conseguir um equilíbrio entre a otimização dos sinais da doença e minimizar esses efeitos secundários são necessários controles frequentes. Além das avaliações analíticas é necessário efetuar ecografia renal para avaliar deposição de cálcio (nefrocalcinose).

É importante aconselhar uma boa higiene oral e promover vigilância da dentição pela Estomatologia. 

Devem ser promovidos estilos de vida saudável com alimentação equilibrada e apoio da Nutrição, evitando o excesso ponderal.

As deformidades ósseas algumas vezes necessitam de correções cirúrgicas que se devem tentar diferir para o final do crescimento. Nos últimos anos a Ortopedia tem utilizado novas técnicas menos agressivas, com aplicação de placas externas sobre as zonas de crescimento do osso, que frenam temporariamente o crescimento ósseo do lado interno ou externo das extremidades distais do fémur ou proximais da tíbia (hemipifisiodese) em vez das osteotomias que usavam no passado.

Outro aspeto no seguimento é dar atenção à qualidade de vida do doente e família. Disponibilizar apoio psicológico, apoio do serviço social e informar de associações de doentes podem constituir formas de suporte muito significativas.

De que forma esta patologia pode impactar a qualidade de vida e autoestima de uma criança/jovem?

As deformidades ósseas com alterações na marcha, a repercussão no crescimento com baixa estatura, a alteração da dentição pelos abcessos recorrentes e fragilidade da dentina, a dor músculo-esquelética são fatores que interferem na autoimagem e na capacidade física. As deformidades e dor contribuem para a redução da mobilidade e aumento ponderal, muito frequente na adolescência e que agrava ainda mais as deformidades dos membros inferiores, fechando um ciclo vicioso. 

A necessidade de intervenções cirúrgicas, internamentos e mais queixas dolorosas são outros fatores que que interferem negativamente a nível da saúde mental, social e de relação destas crianças/jovens e da família.

Quando este chega a idade adulta, como deve ser feita, na sua opinião, a transição do acompanhamento – peço que explore o caso da Catarina que transitou recentemente para o acompanhamento de adultos. Teve feedback dos colegas ou da jovem, por exemplo? 

A transição para o acompanhamento de adultos no XLH, como noutras doenças crónicas, deve ter como objetivo reduzir a perda de seguimento dos doentes e melhorar a qualidade de cuidados na vida adulta e o prognóstico da doença.  É necessário preparar os pais e o jovem para que este passe progressivamente a assumir a responsabilidade dos cuidados e também estabelecer uma boa articulação entre o médico pediatra e o médico de adultos que vai receber o jovem. Idealmente deveria haver uma consulta de transição, feita em simultâneo com médico de pediatria e o de adultos onde fossem transmitidos os dados relevantes daquele doente. Quando estas consultas de transição não estão implementadas ou não são possíveis por mudança de hospital, a transição do doente deve ser o mais personalizada e completa possível. É importante transmitir as dificuldades, os exames efetuados, a compliance com o tratamento, as angústias da família. O jovem e família devem sentir segurança e confiar que o médico de adultos conhece bem a doença e que teve um conhecimento personalizado do seu caso.

Quando não é possível a consulta simultânea, o relatório escrito de alta pormenorizado deve ser complementado tanto quanto possível com informação oral, individualizada, de modo a evitar repetição de testes desnecessários e garantir a continuidade da medicação sem interrupções e ajustada à nova fase. 

O médico pediatra deve manifestar abertura para ser contactado sempre que houver qualquer dúvida por parte do doente ou do médico de adultos.

Num momento de transição que conselhos ou mensagem deixaria a outras famílias?

É uma doença para a vida, multissistémica, progressiva e que não termina com o fim do crescimento.

Na vida adulta a doença continua com osteomalacia progressiva manifesta por dor osteoarticular, entesopatias, fraturas e pseudofraturas assim como as anomalias dentárias e surdez. Manter um seguimento multidisciplinar continua a ser importante e, atualmente, tem sido muito debatida a manutenção de terapêutica na vida adulta, suportada pela evidência de bons resultados com o uso do burosumab nos doentes adultos.

Outra mensagem é relembrar o risco de transmissão da doença aos filhos e que isto implica o rastreio precoce, de modo a iniciar o mais cedo possível o tratamento.

De um modo geral, qual o prognóstico da patologia?

O XLH quando não tratado condiciona sequelas graves incluindo dores osteoarticulares, deformidades ósseas, baixa estatura e complicações dentárias com perda de dentes precocemente. 

A prevenção deste quadro de sequelas assenta em primeiro lugar no diagnóstico precoce que vai permitir o início de tratamento atempado.

A vigilância multidisciplinar e o cumprimento da terapêutica são fundamentais. 

Por último os avanços recentes na terapêutica farmacológica com a disponibilidade do burosumab, que corrige o defeito básico e tem mostrado eficácia e segurança sustentadas, mas ainda de curto prazo e provavelmente vai modificar o futuro destes doentes.

Autor: 
Sofia Esteves dos Santos
Nota: 
As informações e conselhos disponibilizados no Atlas da Saúde não substituem o parecer/opinião do seu Médico, Enfermeiro, Farmacêutico e/ou Nutricionista.
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